30 de ago. de 2009

Viscosidade e Velocidade

Uma indicação da habilidade de algum conhecimento lidar com a complexidade é o quanto de experiência prática e fatos reais ele contém.

O conhecimento não é uma estrutura rígida que exclui o que não se encaixa; ele apenas se torna mais complexo para lidar com a complexidade. Embora seja tentador procurar por respostas simples para problemas complexos e lidar com as complexidades como se elas não existissem, conhecer mais e melhor geralmente leva a decisões melhores, mesmo que abordagens mais enxutas pareçam ser mais claras e definitivas.

Certeza e clareza geralmente custam o preço de ignorar fatores essenciais: isso porque aprendemos com o tempo que o certo e o errado convivem juntos. Confiar num simples conjunto de dados sem contradição pode dar a sensação de domínio, mas como esses dados tem algum ponto fraco desconhecido, eles desmoronam subitamente, sem aviso.

Um ponto interessante na transferência de conhecimento é o compromisso entre velocidade e viscosidade. Velocidade refere-se ao quanto rapidamente aquilo se espalha, enquanto viscosidade refere-se à riqueza de conhecimento transferido.

O método de transferência tem muita influência na viscosidade: o aprendizado por absorção e observação é muito mais rico (e lento) do que a transferência através da leitura de um artigo na internet. Se considerarmos que um aprendizado genuíno compreende não somente a absorção de conhecimento mas também a sua aceitação envolvendo processos pessoais e muitos fatores psicologicos, então podemos imaginar o quanto a riqueza no conteúdo é importante para a efetividade do aprendizado. E geralmente o que aumenta a velocidade diminui a viscosidade.

O que resta imaginar é qual será o resultado dessa nova combinação que a moderna tecnologia trás, onde uma velocidade imensa vem junto com pouca riqueza de conhecimento. As mentes do futuro vão operar sob um novo paradigma? Ou a transmissão de conhecimento por absorção vai continuar forte, mas menos visível?

21 de ago. de 2009

Artimanha

Há basicamente duas concepções sobre trapacear. Uma delas assume que as pessoas são fundamentalmente desonestas e buscam continuamente oportunidades para trapacear, baseado numa análise de custo-benefício da ação.

A segunda possibilidade nos diz que as pessoas são basicamente honestas, mas circunstâncias tentadores fazem-nas trapacear: "emprestam" uma caneta numa conferência, reportam um almoço de negócios com a namorada.

Qual tipo prevalece e o que os motiva?

Experimentos controlados mostram que as pessoas trapaceiam ligeiramente sempre que podem. Curiosamente o risco de serem pegas não influencia tanto a tendência de trapacear quanto lembrá-las, logo de início, de seus códigos morais. Algo como começar assinando e depois preencher uma declaração de condições de saúde para um plano médico. Isso diminui consideravelmente a disposição para trapacear.

Finalmente, temos uma incrível capacidade de racionalizar nossa desonestidade e justificar o que fizemos em casos onde o benefício está indiretamente ligado a dinheiro vivo.

Ou seja, as trocas não-monetárias parecem dar uma folga psicológica maior para, por exemplo, conseguirmos burlar documentos e fazer acordos pessoais suspeitos.

E o que acontece quando pessoas colaboram num trabalho em grupo? Será que times autônomos são mais éticos que pessoas agindo individualmente? Infelizmente os experimentos mostram que os grupos se comportam de maneira ainda mais leviana, especialmente se percebem que qualquer trapaça individual vai trazer ganhos para todos e se isso for visível para o grupo. É como se trapacear fosse contagioso...

Embora grupos de trabalho tenham muitas vantagens do ponto de vista social e funcional, eles são mais vulneráveis a condutas pouco éticas, principalmente se forem grupos com pouca supervisão.

15 de ago. de 2009

Verdade

Para a certeza o desconhecido é irrelevante. Para a verdade, o desconhecido é justamente o que importa.

Quando é que você crê numa verdade? Toda a verdade eu só acredito por que inicialmente ela é uma verdade de outro. Eu acredito na verdade através do outro. O outro que acredita é que me disse. E essa estrutura de crença não é abalada pela minha dúvida particular.

As crenças religiosas são assim. A dúvida sempre paira sobre qualquer religioso, mas a crença na verdade espiritual se sustenta por que há um outro que crê. Isso foi fundamental no cristianismo, onde houve um primeiro que deu prova de crer.

O serviço da crença é depositar no outro uma última instância nessa possibilidade de crer, e nesse sentido é preciso entender que até mesmo algum sofrimento maior já terá sido pago por esses “outros”, e eu posso sofrer apenas parcialmente.

Quando Descartes ousou trocar a verdade pela certeza científica, propondo que acreditássemos apenas naquilo que pudesse ser provado, provocou uma troca no modo de crer pois passamos a acreditar em tudo sozinhos, a sofrer tudo sozinhos.

Isso quer dizer que trazer a certeza do mundo das medidas para a nosso mundo pessoal trás uma sobrecarga imensa, ao nos desumanizar tentando nos definir de maneira exaustiva, sem margens de manobra.

Precisamos sempre de espaço para nos redefinir. E a certeza científica não nos dá isso. Esse é um serviço da verdade.

9 de ago. de 2009

Corpo

Cada cultura cria seu resto de vida e dá um estatuto ao corpo. E a afirmação do sujeito passa por lidar com o resto da vida.

Na Grécia se pensava a vida como sendo de dois tipos: zoe, a vida animal, com seus excessos, e o bios, que era a vida política, qualificada, favorita.

A bios significava cultivar as boas condutas para manter a virtude essencial de fazer viver a pólis democrática. A zoe, ao contrário, aparecia como aquilo que é um resto, como indiscriminado e que deveria ser evitado aparecer publicamente, para ser objeto de ascese e melhora, pois essa animalidade e seus excessos era entendida como uma escravidão às necessidades, como uma vida menor. Isso era um resto da vida que precisava ser oculto.

O corpo não era significativo, o soma, nada dizia à vida. Corpo era ligado apenas à escravidão como vida indefinida no mundo das necessidades.

Passando para os romanos, vemos que foram grandes guerreiros, administradores, comerciantes e juristas, mas pouco políticos e filósofos.
Os romanos traduziram o zoe e a bios gregas em uma só coisa, a vita. A vida digna e indigna entrou para o domínio jurídico e apareceu a figura do homo sacer, que era aquele patrício banido com corpo mas sem vida política. Não podia participar da cidadania e podia ser morto sem que isso configurasse um crime. Ele existia para poder afirmar o absoluto poder do governante, que escolhia quem banir. Ele era o representante do resto da vida a ser eliminado publicamente.

Com o advento do cristianismo, consagra-se a idéia da sacralidade de qualquer vida – agora dividida em vida na graça do espírito ou no pecado da carne. O resto da vida cristã é o excesso do amor divino, solicitando sempre a sermos mais do que somos, lidando com algo insondável, algo indizível. A minha vida como uma doação divina, revela ao mesmo tempo um divino que não cabe nela.

Por esse caminho, o cristianismo, ao contrário de outras religiões étnicas ou de casta, provou-se universal pois a vida era concebida de forma que nem em toda a humanidade Deus caberia. Era algo para judeus, gregos, adúlteros, fariseus, ricos, pobres, aleijados, enfim para todos. E qualquer vida pequena poderia fazer parte da grande vida espiritual, do grande rebanho. E eternamente a espera da pergunta: o que o outro quer? O que o outro deseja? E com isso, ao contrário de ter uma existência plena como os gregos e os romanos que opunham a vida a um resto menor, passamos a ter uma existência sempre em falta, angustiada, neurótica.

Com o racionalismo da modernidade, o corpo passa a ditar o que é a vida e não mais a vida a dizer o que pode ser o corpo. E os políticos, por outro lado, tiraram Deus da vida pública, permitindo-o apenas na vida privada. Cada um passa a ser responsável por si, e o corpo sendo a nossa primeira propriedade, justifica todas as outras posses decorrentes.

Nessa ênfase particular do indivíduo e para garantir a ordem pública, criaram-se mecanismos de controle demográfico tornando-o o corpo domesticável, até certo ponto. O restos da vida passaram a ser os loucos, os indignos, os não enquadrados nas regras sociais. Então, a vida conforme a razão também deixa suas rebarbas, às vezes irrecuperáveis.

1 de ago. de 2009

Medo

Devemos gastar quantidades enormes de energia para conseguir viver todos os dias sem sermos atormentados pela consciência de que a qualquer momento algo pode dar errado. Essa consciência não pode simplesmente vir à tona, senão ficaríamos paralisados diante do pânico. Quem mente melhor sobrevive, quem fica paralisado diante desse medo, morre.

O principal afeto do humano é o medo. Afinal, não fabricamos veneno, não conseguimos voar, não conseguimos morder um bicho vivo, temos um tamanho desengonçado, não enxergamos bem , não ouvimos bem: tudo que temos é pensar. E pensar é o nosso grande barato: essa capacidade de observar o meio ambiente e tomar consciência disso é que nos permite ver lá adiante que não vai dar certo...

Entretanto, continuamos a viver: comemos, viajamos, namoramos, não paramos a vida por causa disso. Quem paralisa, com pânico, é porque está com falhas em sua estrutura de proteção, está deixando aparecer esse medo embutido e profundo de existir. No ser normal estão presentes inconscientemente o temor da morte e o esquecimento consciente disso.

Isso tudo nos leva para a verdadeira condição humana, que é a de um náufrago. Você só cresce e vira gente quando toma consciência de que você já perdeu. Enquanto não se tem essa consciência não se está de fato aqui. Um náufrago não está morto, mas ele está jogado no mundo e não sabe bem onde e nem como sair disso.

O naufrágio é uma profunda experiência de gozo de estar vivo, mas que o tempo todo está sendo erodido, frustrado e que exige cada vez mais esforço de negação disso. Mas é o que somos.

É difícil pensar. Mais comum é sedar a consciência, invejar o que parece estar bem: fazer a comunhão com a natureza, com os animais, com a casinha no campo.

Descobrir que o universo não foi feito para ser o nosso berço é uma experiência profundamente humana: só um louco não tem medo.