
Na Grécia se pensava a vida como sendo de dois tipos: zoe, a vida animal, com seus excessos, e o bios, que era a vida política, qualificada, favorita.
A bios significava cultivar as boas condutas para manter a virtude essencial de fazer viver a pólis democrática. A zoe, ao contrário, aparecia como aquilo que é um resto, como indiscriminado e que deveria ser evitado aparecer publicamente, para ser objeto de ascese e melhora, pois essa animalidade e seus excessos era entendida como uma escravidão às necessidades, como uma vida menor. Isso era um resto da vida que precisava ser oculto.
O corpo não era significativo, o soma, nada dizia à vida. Corpo era ligado apenas à escravidão como vida indefinida no mundo das necessidades.
Passando para os romanos, vemos que foram grandes guerreiros, administradores, comerciantes e juristas, mas pouco políticos e filósofos.
Os romanos traduziram o zoe e a bios gregas em uma só coisa, a vita. A vida digna e indigna entrou para o domínio jurídico e apareceu a figura do homo sacer, que era aquele patrício banido com corpo mas sem vida política. Não podia participar da cidadania e podia ser morto sem que isso configurasse um crime. Ele existia para poder afirmar o absoluto poder do governante, que escolhia quem banir. Ele era o representante do resto da vida a ser eliminado publicamente.
Com o advento do cristianismo, consagra-se a idéia da sacralidade de qualquer vida – agora dividida em vida na graça do espírito ou no pecado da carne. O resto da vida cristã é o excesso do amor divino, solicitando sempre a sermos mais do que somos, lidando com algo insondável, algo indizível. A minha vida como uma doação divina, revela ao mesmo tempo um divino que não cabe nela.
Por esse caminho, o cristianismo, ao contrário de outras religiões étnicas ou de casta, provou-se universal pois a vida era concebida de forma que nem em toda a humanidade Deus caberia. Era algo para judeus, gregos, adúlteros, fariseus, ricos, pobres, aleijados, enfim para todos. E qualquer vida pequena poderia fazer parte da grande vida espiritual, do grande rebanho. E eternamente a espera da pergunta: o que o outro quer? O que o outro deseja? E com isso, ao contrário de ter uma existência plena como os gregos e os romanos que opunham a vida a um resto menor, passamos a ter uma existência sempre em falta, angustiada, neurótica.
Com o racionalismo da modernidade, o corpo passa a ditar o que é a vida e não mais a vida a dizer o que pode ser o corpo. E os políticos, por outro lado, tiraram Deus da vida pública, permitindo-o apenas na vida privada. Cada um passa a ser responsável por si, e o corpo sendo a nossa primeira propriedade, justifica todas as outras posses decorrentes.
Nessa ênfase particular do indivíduo e para garantir a ordem pública, criaram-se mecanismos de controle demográfico tornando-o o corpo domesticável, até certo ponto. O restos da vida passaram a ser os loucos, os indignos, os não enquadrados nas regras sociais. Então, a vida conforme a razão também deixa suas rebarbas, às vezes irrecuperáveis.
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