30 de mai. de 2009

Liberdade da Incerteza


Uma perspectiva sociológica brilhante (vinda de um estudo de Mary Douglas chamado Purity and Danger) nos mostra a importância do viscoso: se um objeto que seguro é sólido, posso soltá-lo quando quero. Mas aqui está o viscoso invertendo os termos: meu ego é subtamente comprometido, abro as mãos, quero desfazer-me do viscoso e ele cola em mim, me puxa, me chupa... já não sou o senhor.

Se mergulho na água não experimento mal estar, pois sei que não vou dissolver-me: mas ao submergir no viscoso, como num barril de melaço, sinto que vou perder-me nele, tocar no viscoso é arriscar-se ser dissolvido na viscosidade, de ser invadido por um elemento do qual não há como fugir.

Assim, a viscosidade implica em perda de liberdade relativa ao outro, e sua intensidade depende das minhas próprias habilidades e recursos.

Pode-se esperar que quanto menos as pessoas controlem e possam controlar as suas vidas, bem como suas fecundas identidades, mais verão as outras como viscosas e mais freneticamente tentarão desprender-se dos estranhos que elas experimentam como uma indesejável substância.

Para alguns moradores seguros em suas casas à prova de ladrões em bairros bem arborizados, o “estranho” é tão agradável quanto uma praia na rebentação, e absolutamente não é viscoso. Esses estranhos dirigem restaurantes e vendem objetos de aspecto esquisito apropriados como assuntos de uma próxima festa. Esses estranhos são os que oferecem serviços que se pode comprar e dispensar. São fornecedores de prazer para o turista, para o patrão e para o cliente.

Muito diferente é a situação dos que não podem sair da área inútil, dos que experimentam o mundo como uma armadilha e não como um parque de diversão. Dos que têm que defender seu território sitiado através de rituais e estranhas vestimentas, inventando atitudes bizarras, quebrando normas, quebrando garrafas, janelas, cabeças.

Reagem desta maneira selvagem, furiosa e alucinada como se reage ao inutilizante poder do viscoso – pois a viscosidade sufocante dos estranhos é o reflexo de sua própria falta de poder.

24 de mai. de 2009

Pureza


A pureza é uma visão das coisas colocadas em lugares diferentes dos que elas ocupariam, se não fossem levadas a se mudar para outro – e é uma visão da ordem, em que cada coisa acha-se em seu justo lugar e em nenhum outro. O oposto da pureza, o sujo e imundo, são as coisas fora do lugar.

Não são as características intrínsecas das coisas que as transformam em sujas, mas tão somente sua localização em relação à ordem de coisas idealizada pelos que procuram a pureza. Um omelete maravilhoso num prato de jantar torna-se outra coisa se despejado sobre um travesseiro. Um prato aceitavelmente limpo enquanto se come torna-se repentinamente sujo quando terminamos a refeição.

Por muito tempo, o trabalho de purificação foi concebido como uma tarefa constante de ordenação, de manutenção do quadro, sob a premissa de ordem e progresso. Mas a pós-modernidade trouxe um deslocamento do quadro de pureza: agora a pureza significa mudar a maneira como as coisas se realizam, criar uma nova ordem que anuncia anormalidades o tempo todo. Os estranhos já não são mais a rotina de outrora, e uma angústia que se condensou no medo do estranho variável impregna a totalidade da vida diária.

Em nosso mundo, o mais severo teste de pureza é mostrar a capacidade de ser seduzido pelas infinitas possibilidades de constante renovação promovida pelo mercado consumidor, de vestir e despir identidades, de passar a vida na caça interminável de cada vez mais sensações e experiências. Nem todos passam por essa prova. Aqueles que não podem são a sujeira da pureza pós-moderna: são os consumidores falhos, incapazes de serem livres conforme o senso de liberdade definido pelo poder de escolha do consumidor. São o refugo do sistema que precisa ser mantido à distância, separados por muros em nome da lei e da ordem – que entretanto se abstém de intervenção na liberdade de consumidor.

Assim como os revolucionários eram impurezas da versão moderna da ordem, embora fossem na realidade seus mais ardorosos fãs, ao estenderem o esforço de colocar em ordem além da fronteira do que o mecanismo de colocar em ordem do Estado poderia permitir, a pós-modernidade também produz suas impurezas que no fundo são fãs ardorosos da mensagem pós moderna de liberdade de escolha: são os gatunos, furtadores de carros e seus alter-egos terroristas e grupos de punição sumária, todos representantes da revelação pós-moderna do descompromisso e livre competição.

23 de mai. de 2009

Imortalidade (Who wants to live forever?)

Cidade dos Imortais, de Jorge Luis Borges. Essa deve ter sido uma cidade não de quaisquer imortais, mas daqueles imortais que primeiro passaram pela experiência de ser mortal, aprenderam as habilidades que refletiam tal experiência e então, certo tempo depois, alcançaram a imortalidade. Deve ter sido chocante a descoberta de que tudo aprendido antes se tornou subitamente inútil e destituído de significado.

Encontravam-se agora jazendo nas covas rasas da areia, após abandonar o palácio que construíram no momento da descoberta da imortalidade: "desses lamentáveis buracos (...)emergiam homens barbudos e macilentos, de pele acinzentada e nus. (...) Não me espantou que eles não conseguissem falar e que devorassem serpentes."

Ser imortal é coisa comum. Com exceção do homem, todas as criaturas são imortais, pois ignoram a morte. O que é divino, incompreensível, é saber que se é imortal. Tudo, dentre os mortais, tem o valor do irrecuperável e do perigoso. Dentre os Imortais, de outro lado, todo ato é o eco de outros que o precederam no passado, sem nenhum início visível. Nada pode acontecer apenas uma vez, nada é preciosamente precário.

Se a morte algum dia fosse derrotada, não haveria mais sentido em todas aquelas coisas que laboriosamente juntamos, a fim de injetar algum propósito nesta vida absurdamente breve. A cultura humana que conhecemos - as artes, a política, a intricada teia de relações humanas, ciência ou tecnologia - foi concebida no ponto do trágico, mas fatal, encontro entre o período finito da existência física humana e a infinitude da vida espiritual.

16 de mai. de 2009

Turistas e vagabundos


O eixo da estratégia de vida pós-moderna não é fazer a identidade deter-se - mas evitar que se fixe.

Turistas que valem o que comem são os mestres supremos da arte de misturar os sólidos e desprender o fixo. Antes e acima de tudo, eles realizam a façanha de não pertencer ao lugar que podem estar visitando: é deles o milagre de estar dentro e fora do lugar ao mesmo tempo.

Os turistas iniciam suas viagens por escolha - ou, pelo menos, assim eles pensam. Eles partem porque acham o lar maçante ou não suficientemente atrativo, demasiadamente familiar e contendo dema­siadamente poucas surpresas, ou porque esperam encontrar em outro lugar uma aventura mais excitante e sensações mais intensas do que a rotina doméstica jamais é capaz de transmitir.

A decisão de abandonar o lar com o fim de explorar terras estranhas é positivamente a mais fácil de tomar pela confortadora percepção de que sempre se pode voltar, se for preciso. Os incômodos dos quartos de hotel podem, de fato, provocar nostalgia, assim como consola e recompensa recordar que há uma casa - em algum lugar - um refúgio do tumulto e em que a pessoa pode abrigar-se. O momento em que a porta é trancada do lado de fora, o lar se toma um sonho. O momento em que a porta é trancada do lado de dentro, ele se converte em prisão. O turista adquiriu o gosto pelos espaços mais vastos e, acima de tudo, completamente abertos.

Mas nem todos os viajantes estão em movimento por preferirem estar em movimento a ficar em seu lugar. Para eles, estar livre significa não ter de viajar de um lado para o outro. Ter um lar e ser permitido ficar dentro dele. São esses os vagabundos, luas escuras que refletem o brilho de sóis brilhantes, os mutantes da evolução pós-moderna, os refugos inaptos da brava espécie nova. Os vagabundos são os restos do mundo que se dedicaram aos serviços dos turistas. Os turistas viajam porque querem; os vagabundos, porque não têm nenhuma outra escolha.

Turistas e vagabundos são as metáforas da vida contemporânea. Uma pessoa pode ser (e freqüentemente o é) um turista ou um vagabundo sem jamais viajar fisicamente para longe.
Estamos todos - de uma forma ou de outra, no corpo ou no espírito, aqui e agora ou no futuro antecipado, de bom ou de mau grado - em movimento; nenhum de nós pode estar certo de que adquiriu o direito a algum lugar uma vez por todas, e ninguém acha que sua permanência num lugar, para sempre, é uma perspectiva provável. Onde quer que nos aconteça parar estamos, pelo menos, parcialmente deslocados ou fora do lugar.

A oposição entre os turistas e os vagabundos é a maior, a principal divisão da sociedade pós-moderna. Estamos todos traçados num contínuo estendido entre os pólos do "turista perfeito" e o "vagabundo incurável" - e os nossos respectivos lugares entre os pólos são traçados segundo o grau de liberdade que possuímos para escolher nossos itinerários de vida.

A liberdade de escolha, é de longe, na sociedade pós-moderna, o mais essencial entre os fatores de estratificação. Quanto mais liberdade de escolha se tem, mais alta a posição alcançada na hierarquia social pós-moderna. As diferenças sociais pós-modernas são feitas com a amplitude e estreiteza da extensão de opções realistas.

Mas o vagabundo é o alter ego do turista - exatamente como o miserável é o alter ego do rico, o selvagem o alter ego do civilizado, ou o estrangeiro o alter ego do nativo. Ser um alter ego significa servir como um depósito de entulho dentro do qual todas as premo­nições inefáveis, os medos inexpressos, as culpas e autocensuras secretas, demasiadamente terríveis para serem lembrados, se despejam; ser um alter ego significa servir como pública exposição do mais íntimo privado, como um demônio interior a ser publicamente exor­cizado, uma efígie em que tudo o que não pode ser suprimido pode ser queimado. O alter ego é o escuro e sinistro fundo contra o qual o eu purificado pode brilhar.

Pode-se viver com as ambigüidades da incerteza que saturam a vida do turista só porque as certezas da vagabundagem são tão inequivocamente asquerosas e repugnantes. O turista precisa de uma alternativa cuja contemplação é pavorosa demais para se manter repetindo, nas horas de tensão, que "não há nenhuma alternativa".

Os vagabundos, as vítimas do mundo que transformou os turistas em seus heróis, têm, afinal, suas utilidades. Como os sociólogos gostam de dizer, eles são "funcionais". É difícil viver em suas imediações, mas inconcebível viver sem eles.

É a sua evidente infelicidade que inspira os outros a agradecerem a Deus, diariamente, por tê-los feito turistas.

9 de mai. de 2009

Super Masculino


O masculino muda no tempo. Assim como o seu sofrimento, que após os movimentos feministas puderam ser desassociados dos sofrimentos da humanidade, como guerras, sub-empregos, pobreza, e passam a existir como sofrimentos do gênero masculino: medo, impotência, aposentadoria.

Mas enquanto a maior assertividade da mulher é positiva, a aproximação do homem de uma maior passividade é percebido como uma perda – a figura do homem atraente ficou entre James Bond que nunca criou filhos e o provedor ainda requisitado pelas mulheres.

O sensível não é atraente e a interferência do homem no lar, reino da mulher, não é bem visto por elas. O modelo familiar estruturado após a era industrial ainda persiste em muitos aspectos, procurando dar um caminho a todos os casamentos. Senão, quantas mulheres acham natural um homem que goste de ficar com os filhos e que comande o lar?

Não. Este homem é um incômodo. É um homem que não sabe fazer as coisas direito, sob o ponto de vista das mulheres. Ele frustra as expectativas de ser provedor submisso e apenas colaborador, deixando-a livre para expandir-se.

Enquanto isso, homens continuam fingindo que são mais poderosos e potentes do que são, com seus carrões e conquistas substituindo muita falta de conversa e sinceridade sobre as coisas de homem, entre homens (algo além de política e futebol). Será que essa recusa de discussão é uma forma de tentar mostrar superioridade a elas? Ou ainda estamos na pré-história na tematização de nossos problemas?

Nisso foi sublime Fernando Pessoa, que tão bem soube captar o masculino em seu Poema em Linha Reta:

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
(...)
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

1 de mai. de 2009

Pós Feminismo?


Vários constrangimentos que existiam para as mulheres antes dos anos ’70 se foram: o medo do ‘chá de cadeira’ nas festas, o uso obrigatório das desconfortáveis cintas-liga, os sapatos apertados, o medo de ser chamada de ‘galinha’.

Mas o capitalismo, na sua habilidade de leitura e incorporação transformou várias conquistas das mulheres em mercadorias, vendidas nos salões de beleza e nas cirurgias plásticas e trouxe outros tipos de amarração. Antigas expressões de liberdade transformaram-se em modernas composições de estilo, que são expressões do mercado – silicone, cortes de cabelo, medidas do corpo.

Se por um lado houve uma naturalização do sistema social, certamente também houve uma queda de projetos da mulher atual, em contraste com a mulher dos anos ’70.
O culto da individualidade imposto a todos coloca então uma questão: onde está a nossa resistência a isso? Se pessoas estão desconfortáveis com essas imposições do mercado, por quê essa relativa apatia?

Se a tendência do capital é crescer e concentrar-se, e se apenas a política pode se opor a isso, então nosso diálogo fora desse sistema é importante e talvez o único caminho para ultrapassar a mediocridade das mensagens da grande mídia que age sob o capital.