6 de set. de 2008

O Sagrado e o Social


Será possível imaginar que a evolução lógica é estreitamente solidária da evolução religiosa e depende, como esta última, de condições sociais?


Se há uma verdade que se nos afigura hoje como plenamente evidente, é que seres que se diferenciam, não apenas por sua aparência exterior, mas por suas propriedades mais essenciais - como os minerais, as plantas, os animais e os homens -, não poderiam ser considerados equivalentes e diretamente substituíveis entre si.

Um longo costume, que a cultura científica enraizou ainda mais fortemente em nossos espíritos, nos ensinou a estabelecer entre os diversos reinos da natureza barreiras cuja existência o próprio transformismo não nega; pois, se ele admite que a vida pode ter nascido da matéria não-viva e o homem do animal, não ignora que os seres vivos, uma vez formados, são outra coisa que os minerais, e o homem, outra coisa que um animal.

No interior de cada reino, as mesmas barreiras separam as diferentes classes: não concebemos como um mineral poderia ter os caracteres distintivos de um outro mineral, ou uma espécie animal os de uma outra espécie. Mas essas distinções, que nos parecem tão naturais, não têm nada de primitivo. Na origem, todos os reinos se confundem uns com os outros. Os rochedos têm um sexo, têm o poder de engendrar; o Sol, a Lua, as estrelas são homens ou mulheres, que experimentam e exprimem sentimentos humanos, enquanto os homens, ao contrário, são concebidos como animais ou plantas.

Esse estado de indistinção encontra-se na base de todas as mitologias. Daí o caráter ambíguo dos seres que os mitos põem em cena; não se pode classificá-los em nenhum gênero definido, pois participam ao mesmo tempo dos gêneros mais opostos. Por isso admite-se sem dificuldade que eles possam transformar-se uns nos outros; e é por transformações desse tipo que os homens, durante muito tempo, acreditaram poder explicar a gênese das coisas.

Foi a religião o agente dessa transfiguração; foram as crenças religiosas que substituíram o mundo, tal como o percebem os sentidos, por um mundo diferente.
Assim, essa notável capacidade de confundir o que nos parece tão manifestamente distinto provém de que as primeiras forças com que a inteligência humana povoou o universo foram elaboradas pela religião. Como elas eram feitas de elementos tomados dos diferentes reinos, fez-se delas o princípio comum das coisas mais heterogêneas, que se viram assim dotadas de uma única e mesma essência.

Torna-se agora necessário entender que explicar é ligar as coisas entre si, é estabelecer entre elas relações que as façam aparecer como função umas das outras, vibrando simpaticamente segundo uma lei interior, fundada em sua natureza. Ora, a sensação, que não percebe nada além do exterior, seria incapaz de nos fazer descobrir essas relações e esses laços internos; somente o espírito pode criar a noção deles.

Quando aprendo que A precede regularmente B, meu conhecimento se enriqueceu de um novo saber, minha inteligência de maneira nenhuma se satisfaz cone uma constatação que não contenha em si sua razão. Só começo a compreeder se me for possível conceber B por um viés que o mostre a mim como não sendo estranho a A, como estando unido a A por alguma relação de parentesco.

O grande serviço que as religiões prestaram ao pensamento é ter construído uma primeira representação do que podiam ser essas relações de parentesco e unir as coisas.

Nas condições em que foi tentado, o empreendimento evidentemente só poderia chegar a resultados precários. O essencial era não deixar o espírito subjugado às aparências sensíveis, mas, ao contrário, ensinar-lhe a dominá-las e a aproximar o que os sentidos separam, pois, a partir do momento em que o homem teve o sentimento de que existem conexões internas entre as coisas, a ciência e a filosofia se tornavam possíveis.

A religião abriu-lhes o caminho. Mas, se pôde desempenhar esse papel, é porque ela é coisa social. Para impor a lei às impressões dos sentidos e substituí-las por uma nova maneira de representar o real, era preciso que um pensamento de um novo tipo se constituísse: o pensamento coletivo. Se somente este podia ter tal eficácia, é porque, para criar todo um mundo de ideais através do qual o mundo das realidades percebidas aparecesse transfigurado, era preciso uma superexcitação das forças intelectuais que só é possível na e pela sociedade.

Assim, entre a lógica do pensamento religioso e a lógica do pensamento científico não há um abismo. Ambas são feitas dos mesmos elementos essenciais, mas desenvolvidos de maneira desigual e diferente.

O que parece sobretudo caracterizar a primeira é um gosto natural tanto pelas confusões intemperantes quanto pelos contrastes de opostos. Ela tende a ser excessiva nos dois sentidos. Quando aproxima, confunde; quando distingue, opõe. Não conhece a medida e as nuanças, busca os extremos; por conseguinte, emprega os mecanismos lógicos com uma espécie de imperícia, mas não ignora nenhum deles.

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