14 de set. de 2008

Ambíguo


As forças religiosas são de dois tipos.

Umas são benéficas, guardiãs da ordem física e moral, dispensadoras da vida, da saúde, de todas as qualidades que os homens estimam: é o caso do princípio totêmico, espalhado por todas as espécies, do antepassado mítico, do animal-protetor, dos heróis civilizadores, dos deuses tutelares de todo tipo e grau. São eles os lugares consagrados ao culto, os objetos utilizados nos ritos regulares, os sacerdotes, os ascetas, etc.

Por outro lado, há as potências más e impuras, produtoras de desordens, causadoras de morte, de doenças, instigadoras de sacrilégios. O único sentimento que o homem tem por elas é o temor, geralmente acompanhado de horror. São elas as forças sobre as quais e pelas quais age o feiticeiro, as que emanam dos cadáveres, do sangue da menstruação, as desencadeadas por toda profanação das coisas santas, etc. Os espíritos dos mortos e os gênios malignos de toda espécie são formas personificadas dessas forças.

Entre essas duas categorias de forças e de seres, o contraste é o mais completo possível, chegando inclusive ao antagonismo mais radical. As potências boas e salutares repelem para longe delas as que as negam e as contradizem. Por isso, as primeiras são interditas às segundas: todo contato entre elas é considerado a pior das profanações. É esse o tipo por excelência de interdição entre coisas sagradas de espécies diferentes.

Deste modo, toda a vida religiosa gravita em torno de dois pólos contrários, entre os quais há a mesma oposição que entre o puro e o impuro, o santo e o sacrílego, o divino e o diabólico.

Mas, ao mesmo tempo que esses dois aspectos da vida religiosa se opõem um ao outro, existe entre eles um forte parentesco. Em primeiro lugar, ambos mantêm a mesma relação com os seres profanos: estes devem se abster de toda relação tanto com as coisas impuras como com as coisas mais santas. As primeiras não são menos interditas que as segundas; são igualmente retiradas de circulação. Vale dizer que também são sagradas.

Claro que os sentimentos que umas e outras inspiram não são idênticos: uma coisa é o respeito, outra, a aversão e o horror. Entretanto, para que os gestos sejam os mesmos nos dois casos, cumpre que os sentimentos expressos não difiram em natureza. De fato, há horror no respeito religioso, sobretudo quando ele é muito intenso, e o temor que as potências malignas inspiram geralmente é acompanhado de algum caráter reverencial.

As nuances pelas quais se diferenciam essas duas atitudes são às vezes tão fugazes, que nem sempre é fácil dizer em que estado de espírito se encontram, ao certo, os fiéis. Entre certos povos semíticos, a carne de porco era interdita; mas nem sempre se sabia com precisão se era a título de coisa impura ou de coisa santa, e a mesma observação pode se aplicar a um grande número de interdições alimentares.

Além disso, acontece com muita freqüência que uma coisa impura ou uma potência maléfica se torne, sem mudar de natureza, mas por uma simples modificação das circunstâncias exteriores, uma coisa santa ou uma potência tutelar, e vice-versa.

Um cadáver, que começa por inspirar apenas terror e distanciamento, é tratado mais tarde como uma relíquia venerada. De uma maneira geral, o sacrílego é simplesmente um profano que foi contagiado por uma força religiosa benéfica. Esta muda de natureza ao mudar de hábitat; macula ao invés de santificar.

O puro e o impuro não são, portanto, dois gêneros separados, mas duas variedades de um mesmo gênero que compreende todas as coisas sagradas. Há duas espécies de sagrado, um fasto, o outro nefasto, e entre as duas formas opostas não somente não há solução de continuidade, como também um mesmo objeto pode passar de uma à outra sem mudar de natureza. Com o puro se faz o impuro, e reciprocamente. É na possibilidade dessas transmutações que consiste a ambigüidade do sagrado.

Quando a sociedade atravessa circunstâncias que a entristecem, a angustiam ou a irritam, ela exerce sobre seus membros uma pressão para que demonstrem, por atos significativos, sua tristeza, sua angústia ou sua cólera. Ela lhes impõe como que um dever de chorar, de gemer, de infligir-se ferimentos ou de infligi-los a outrem, pois essas manifestações coletivas, e a comunhão moral que elas testemunham e reforçam, restituem ao grupo a energia que os acontecimentos ameaçavam subtrair-lhe, permitindo assim que ele se recupere.

Assim que o luto termina, a sociedade doméstica está serenada pelo próprio luto; volta a ter confiança; os indivíduos são aliviados da penosa pressão exercida sobre eles; sentem-se mais à vontade. Parece-lhes, portanto, que o espírito do morto abandonou seus sentimentos hostis para se tornar um protetor benevolente..

Em resumo, os dois pólos da vida religiosa correspondem aos dois estados opostos por que passa toda vida social. Há entre o sagrado fasto e o sagrado nefasto o mesmo contraste que entre os estados de euforia e de disforia coletiva. Mas, como ambos são igualmente coletivos, há, entre as construções mitológicas que os simbolizam, um íntimo parentesco de natureza. Os sentimentos partilhados variam do extremo abatimento à extrema alegria, da irritação dolorosa ao entusiasmo extático; mas, em todos os casos, há comunhão das consciências e reconforto mútuo em conseqüência dessa comunhão. O processo fundamental é sempre o mesmo; apenas as circunstâncias o colorem diferentemente.

Por mais complexas que sejam as manifestações exteriores da vida religiosa, ela é, no fundo, una e simples. Corresponde em toda parte a uma mesma necessidade e em toda parte deriva de um mesmo estado de espírito. Sob todas as suas formas, tem por objeto elevar o homem acima de si mesmo e proporcionar-lhe uma vida superior à que ele teria se obedecesse unicamente a suas espontaneidades individuais: as crenças exprimem essa vida em termos de representações; os ritos a organizam e regulam seu funcionamento.

Alguém errou


Parece iminente um desastre que ameace a coletividade?

Esta se reúne, e é naturalmente uma impressão de inquietude e de angústia que domina o grupo reunido. A experiência em comum desses sentimentos tem por efeito, como sempre, intensificá-los. Ao se afirmarem, eles se exaltam, se inflamam, atingem um grau de violência que se traduz pela violência correspondente dos gestos que os exprimem.

Como na morte de um parente próximo, as pessoas lançam gritos terríveis, se enfurecem, sentem a necessidade de rasgar e destruir; é para satisfazer essa necessidade que elas se batem, se ferem, fazem correr sangue.

Mas, quando as emoções têm essa vivacidade, por mais dolorosas que sejam nada têm de deprimente; ao contrário, denotam um estado de efervescência que implica uma mobilização de todas as forças ativas e inclusive um afluxo de energias exteriores. Pouco importa que essa exaltação tenha sido provocada por um acontecimento triste, ela não deixa de ser real e não difere especificamente da que se observa nas festas alegres. Inclusive ela se manifesta às vezes por movimentos da mesma natureza: é o mesmo frenesi que se apodera dos fiéis, a mesma tendência às orgias sexuais, sinal certo de uma grande excitação nervosa.

Pelo simples fato de serem coletivas, eles elevam a energia vital. Ora, quando as pessoas sentem em si a vida - seja sob a forma de irritação penosa, seja de alegre entusiasmo -, elas não crêem na desgraça; portanto, se tranqüilizam, voltam a ter coragem e, subjetivamente, tudo acontece como se o rito tivesse realmente afastado o perigo que se temia.

É dessa maneira que se atribuem aos movimentos de que ele é feito, aos gritos emitidos, ao sangue derramado, aos ferimentos infligidos em si ou nos outros, virtudes curativas ou preventivas; e, como essas diferentes sevícias fazem necessariamente sofrer, o próprio sofrimento acaba sendo considerado um meio de conjurar o mal, de curar a doença.

Mais tarde, quando a maior parte das forças religiosas tomou a forma de personalidades morais, explicou-se a eficácia dessas práticas imaginando que elas tinham por objeto aplacar um deus maléfico ou irritado. Mas essas concepções apenas refletem o rito e os sentimentos que ele suscita, são uma interpretação dele, não sua causa determinante.

Uma falta ritual não age de outra maneira. Também ela é uma ameaça para a coletividade; atinge-a em sua existência moral, já que a atinge em suas crenças. Mas se a cólera que ela provoca se afirma ostensivamente e com energia, essa cólera compensa o mal que a causou. Pois, se ela for intensamente sentida por todos, é que a infração cometida é uma exceção e a fé comum permanece inteira. A unidade moral do grupo não está, portanto, em perigo.

Ora, a pena infligida a título de expiação não é senão a manifestação dessa cólera pública, a prova material de sua unanimidade. Com isso ela tem realmente o efeito reparador que lhe atribuem. No fundo, o sentimento que está na raiz dos ritos propriamente expiatórios não difere em natureza daquele que encontramos na base dos outros ritos piaculares: é uma espécie de dor irritada que tende a se manifestar por atos de destruição. Ora ela se alivia à custa daquele mesmo que a sente, ora à custa de
um terceiro estranho. Mas em ambos os casos o mecanismo psíquico é essencialmente o mesmo.

13 de set. de 2008

Luto


Um primeiro fato é certo: o luto não é a expressão espontânea de emoções individuais. Se os parentes choram, se lamentam, se mortificam, não é porque se sintam pessoalmente atingidos pela morte de seu próximo.

Certamente pode ocorrer, em casos particulares, que a tristeza expressa seja realmente sentida. Mas, de maneira geral, não há relação alguma entre os sentimentos experimentados e os gestos executados pelos atores do rito.

Se, no momento mesmo em que os que choram parecem arrasados pela dor, lhes dirigem a palavra para conversar sobre algum assunto temporal, acontece com frequência que mudem imediatamente de fisionomia e de tom, e adquiram um ar sorridente, e conversem com a maior naturalidade do mundo.

O luto não é um movimento natural da sensibilidade privada, machucada por uma perda cruel, mas um dever imposto pelo grupo. As pessoas se lamentam, não simplesmente porque estejam tristes, mas porque são obrigadas a se lamentar. É uma atitude ritual que deve-se adotar por respeito ao costume, mas que em larga medida é independente do estado afetivo dos indivíduos.

Quando um indivíduo morre, o grupo familiar ao qual pertence sente-se diminuído e, para reagir contra essa diminuição, se reúne. Uma infelicidade comum tem os mesmos efeitos que a chegada de um acontecimento feliz: aviva os sentimentos coletivos que, por isso, levam os indivíduos a se procurar e a se aproximar.

Não somente os próximos mais diretamente atingidos trazem ao encontro sua dor pessoal, como também a sociedade exerce sobre seus membros uma pressão moral para que harmonizem seus sentimentos com a situação. Permitir que eles permaneçam indiferentes ao golpe que a atinge e a diminui seria proclamar que ela não ocupa nos seus corações o lugar a que tem direito; seria negá-la.

Uma família que tolera que um dos seus possa morrer sem ser pranteado testemunha com isso sua falta de unidade moral e de coesão: ela abdica, renuncia a existir. O indivíduo, por sua vez, quando firmemente ligado à sociedade de que faz parte, sente-se moralmente compelido a participar de suas tristezas e de suas alegrias; desinteressar-se delas seria romper os vínculos que o unem à coletividade, seria renunciar a querê-la e contradizer-se.

Se o cristão, nas festas comemorativas da Páscoa, se o judeu, no aniversário da queda de Jerusalém, jejuam e se mortificam, não é para manifestar uma tristeza espontaneamente sentida. Nessas circunstâncias, o estado interior do crente nada tem a ver com as duras abstinências a que se submete. Se está triste, é sobretudo porque se obriga a ficar triste, e obriga-se a isso para afirmar sua fé.

Vê-se que essa explicação do luto faz abstração completa da noção de alma ou de espírito. As únicas forças realmente em jogo são de natureza inteiramente impessoal: são as emoções despertadas no grupo pela morte de um de seus membros.

6 de set. de 2008

O Sagrado e o Social


Será possível imaginar que a evolução lógica é estreitamente solidária da evolução religiosa e depende, como esta última, de condições sociais?


Se há uma verdade que se nos afigura hoje como plenamente evidente, é que seres que se diferenciam, não apenas por sua aparência exterior, mas por suas propriedades mais essenciais - como os minerais, as plantas, os animais e os homens -, não poderiam ser considerados equivalentes e diretamente substituíveis entre si.

Um longo costume, que a cultura científica enraizou ainda mais fortemente em nossos espíritos, nos ensinou a estabelecer entre os diversos reinos da natureza barreiras cuja existência o próprio transformismo não nega; pois, se ele admite que a vida pode ter nascido da matéria não-viva e o homem do animal, não ignora que os seres vivos, uma vez formados, são outra coisa que os minerais, e o homem, outra coisa que um animal.

No interior de cada reino, as mesmas barreiras separam as diferentes classes: não concebemos como um mineral poderia ter os caracteres distintivos de um outro mineral, ou uma espécie animal os de uma outra espécie. Mas essas distinções, que nos parecem tão naturais, não têm nada de primitivo. Na origem, todos os reinos se confundem uns com os outros. Os rochedos têm um sexo, têm o poder de engendrar; o Sol, a Lua, as estrelas são homens ou mulheres, que experimentam e exprimem sentimentos humanos, enquanto os homens, ao contrário, são concebidos como animais ou plantas.

Esse estado de indistinção encontra-se na base de todas as mitologias. Daí o caráter ambíguo dos seres que os mitos põem em cena; não se pode classificá-los em nenhum gênero definido, pois participam ao mesmo tempo dos gêneros mais opostos. Por isso admite-se sem dificuldade que eles possam transformar-se uns nos outros; e é por transformações desse tipo que os homens, durante muito tempo, acreditaram poder explicar a gênese das coisas.

Foi a religião o agente dessa transfiguração; foram as crenças religiosas que substituíram o mundo, tal como o percebem os sentidos, por um mundo diferente.
Assim, essa notável capacidade de confundir o que nos parece tão manifestamente distinto provém de que as primeiras forças com que a inteligência humana povoou o universo foram elaboradas pela religião. Como elas eram feitas de elementos tomados dos diferentes reinos, fez-se delas o princípio comum das coisas mais heterogêneas, que se viram assim dotadas de uma única e mesma essência.

Torna-se agora necessário entender que explicar é ligar as coisas entre si, é estabelecer entre elas relações que as façam aparecer como função umas das outras, vibrando simpaticamente segundo uma lei interior, fundada em sua natureza. Ora, a sensação, que não percebe nada além do exterior, seria incapaz de nos fazer descobrir essas relações e esses laços internos; somente o espírito pode criar a noção deles.

Quando aprendo que A precede regularmente B, meu conhecimento se enriqueceu de um novo saber, minha inteligência de maneira nenhuma se satisfaz cone uma constatação que não contenha em si sua razão. Só começo a compreeder se me for possível conceber B por um viés que o mostre a mim como não sendo estranho a A, como estando unido a A por alguma relação de parentesco.

O grande serviço que as religiões prestaram ao pensamento é ter construído uma primeira representação do que podiam ser essas relações de parentesco e unir as coisas.

Nas condições em que foi tentado, o empreendimento evidentemente só poderia chegar a resultados precários. O essencial era não deixar o espírito subjugado às aparências sensíveis, mas, ao contrário, ensinar-lhe a dominá-las e a aproximar o que os sentidos separam, pois, a partir do momento em que o homem teve o sentimento de que existem conexões internas entre as coisas, a ciência e a filosofia se tornavam possíveis.

A religião abriu-lhes o caminho. Mas, se pôde desempenhar esse papel, é porque ela é coisa social. Para impor a lei às impressões dos sentidos e substituí-las por uma nova maneira de representar o real, era preciso que um pensamento de um novo tipo se constituísse: o pensamento coletivo. Se somente este podia ter tal eficácia, é porque, para criar todo um mundo de ideais através do qual o mundo das realidades percebidas aparecesse transfigurado, era preciso uma superexcitação das forças intelectuais que só é possível na e pela sociedade.

Assim, entre a lógica do pensamento religioso e a lógica do pensamento científico não há um abismo. Ambas são feitas dos mesmos elementos essenciais, mas desenvolvidos de maneira desigual e diferente.

O que parece sobretudo caracterizar a primeira é um gosto natural tanto pelas confusões intemperantes quanto pelos contrastes de opostos. Ela tende a ser excessiva nos dois sentidos. Quando aproxima, confunde; quando distingue, opõe. Não conhece a medida e as nuanças, busca os extremos; por conseguinte, emprega os mecanismos lógicos com uma espécie de imperícia, mas não ignora nenhum deles.