
As forças religiosas são de dois tipos.
Umas são benéficas, guardiãs da ordem física e moral, dispensadoras da vida, da saúde, de todas as qualidades que os homens estimam: é o caso do princípio totêmico, espalhado por todas as espécies, do antepassado mítico, do animal-protetor, dos heróis civilizadores, dos deuses tutelares de todo tipo e grau. São eles os lugares consagrados ao culto, os objetos utilizados nos ritos regulares, os sacerdotes, os ascetas, etc.
Por outro lado, há as potências más e impuras, produtoras de desordens, causadoras de morte, de doenças, instigadoras de sacrilégios. O único sentimento que o homem tem por elas é o temor, geralmente acompanhado de horror. São elas as forças sobre as quais e pelas quais age o feiticeiro, as que emanam dos cadáveres, do sangue da menstruação, as desencadeadas por toda profanação das coisas santas, etc. Os espíritos dos mortos e os gênios malignos de toda espécie são formas personificadas dessas forças.
Entre essas duas categorias de forças e de seres, o contraste é o mais completo possível, chegando inclusive ao antagonismo mais radical. As potências boas e salutares repelem para longe delas as que as negam e as contradizem. Por isso, as primeiras são interditas às segundas: todo contato entre elas é considerado a pior das profanações. É esse o tipo por excelência de interdição entre coisas sagradas de espécies diferentes.
Deste modo, toda a vida religiosa gravita em torno de dois pólos contrários, entre os quais há a mesma oposição que entre o puro e o impuro, o santo e o sacrílego, o divino e o diabólico.
Mas, ao mesmo tempo que esses dois aspectos da vida religiosa se opõem um ao outro, existe entre eles um forte parentesco. Em primeiro lugar, ambos mantêm a mesma relação com os seres profanos: estes devem se abster de toda relação tanto com as coisas impuras como com as coisas mais santas. As primeiras não são menos interditas que as segundas; são igualmente retiradas de circulação. Vale dizer que também são sagradas.
Claro que os sentimentos que umas e outras inspiram não são idênticos: uma coisa é o respeito, outra, a aversão e o horror. Entretanto, para que os gestos sejam os mesmos nos dois casos, cumpre que os sentimentos expressos não difiram em natureza. De fato, há horror no respeito religioso, sobretudo quando ele é muito intenso, e o temor que as potências malignas inspiram geralmente é acompanhado de algum caráter reverencial.
As nuances pelas quais se diferenciam essas duas atitudes são às vezes tão fugazes, que nem sempre é fácil dizer em que estado de espírito se encontram, ao certo, os fiéis. Entre certos povos semíticos, a carne de porco era interdita; mas nem sempre se sabia com precisão se era a título de coisa impura ou de coisa santa, e a mesma observação pode se aplicar a um grande número de interdições alimentares.
Além disso, acontece com muita freqüência que uma coisa impura ou uma potência maléfica se torne, sem mudar de natureza, mas por uma simples modificação das circunstâncias exteriores, uma coisa santa ou uma potência tutelar, e vice-versa.
Um cadáver, que começa por inspirar apenas terror e distanciamento, é tratado mais tarde como uma relíquia venerada. De uma maneira geral, o sacrílego é simplesmente um profano que foi contagiado por uma força religiosa benéfica. Esta muda de natureza ao mudar de hábitat; macula ao invés de santificar.
O puro e o impuro não são, portanto, dois gêneros separados, mas duas variedades de um mesmo gênero que compreende todas as coisas sagradas. Há duas espécies de sagrado, um fasto, o outro nefasto, e entre as duas formas opostas não somente não há solução de continuidade, como também um mesmo objeto pode passar de uma à outra sem mudar de natureza. Com o puro se faz o impuro, e reciprocamente. É na possibilidade dessas transmutações que consiste a ambigüidade do sagrado.
Quando a sociedade atravessa circunstâncias que a entristecem, a angustiam ou a irritam, ela exerce sobre seus membros uma pressão para que demonstrem, por atos significativos, sua tristeza, sua angústia ou sua cólera. Ela lhes impõe como que um dever de chorar, de gemer, de infligir-se ferimentos ou de infligi-los a outrem, pois essas manifestações coletivas, e a comunhão moral que elas testemunham e reforçam, restituem ao grupo a energia que os acontecimentos ameaçavam subtrair-lhe, permitindo assim que ele se recupere.
Assim que o luto termina, a sociedade doméstica está serenada pelo próprio luto; volta a ter confiança; os indivíduos são aliviados da penosa pressão exercida sobre eles; sentem-se mais à vontade. Parece-lhes, portanto, que o espírito do morto abandonou seus sentimentos hostis para se tornar um protetor benevolente..
Em resumo, os dois pólos da vida religiosa correspondem aos dois estados opostos por que passa toda vida social. Há entre o sagrado fasto e o sagrado nefasto o mesmo contraste que entre os estados de euforia e de disforia coletiva. Mas, como ambos são igualmente coletivos, há, entre as construções mitológicas que os simbolizam, um íntimo parentesco de natureza. Os sentimentos partilhados variam do extremo abatimento à extrema alegria, da irritação dolorosa ao entusiasmo extático; mas, em todos os casos, há comunhão das consciências e reconforto mútuo em conseqüência dessa comunhão. O processo fundamental é sempre o mesmo; apenas as circunstâncias o colorem diferentemente.
Por mais complexas que sejam as manifestações exteriores da vida religiosa, ela é, no fundo, una e simples. Corresponde em toda parte a uma mesma necessidade e em toda parte deriva de um mesmo estado de espírito. Sob todas as suas formas, tem por objeto elevar o homem acima de si mesmo e proporcionar-lhe uma vida superior à que ele teria se obedecesse unicamente a suas espontaneidades individuais: as crenças exprimem essa vida em termos de representações; os ritos a organizam e regulam seu funcionamento.