30 de set. de 2007

Ressentimento

O ressentimento é uma constelação de afetos, desde a mágoa, a inveja, a raiva até a vingança, e que atinge indivíduos, grupos sociais e países. Embora vivenciar o ressentimento com conhecimento de causa seja uma experiência riquíssima, fala-se pouco sobre o assunto. Entretanto, o ressentimento foi objeto de estudo de grandes autores e particularmente a psicóloga Rita Kehl deu um tratamento brilhante, do qual me aproveito para escrever este texto, dividido em partes.

-O mecanismo
O ressentimento define-se como uma mágoa que não se supera. É um excesso de memória que tem como função o esquecimento primordial.
Agindo como mola de comportamento de diversos personagens reais e fictícios, tem uma ligação com a modernidade, que é o objeto fundamental deste texto.
De forma interessante, o ressentimento apresenta-se com duas faces: como afeto declarado é mau visto, sentido em alguém que não vai prá frente, que é amargo. Ninguém gosta de ser reconhecido como ressentido.
Mas quando o ressentimento vem camuflado na forma de uma queixa de alguém que se vê injustiçado, ou de alguém que se coloca como sensível, daí ele é visto em geral com complacência e generosidade, parecendo positivo.

Desta forma, o ressentimento é um afeto ímpar porque não pode ser nomeado mas tem, de fato, um brilho narcísico próprio. Ao se colocar como vítima de outros, o indivíduo fica parecendo melhor e passa a ser bem visto por todos. Basta notar que personagens ressentidos do teatro, cinema e televisão são recebidos pelo público como personagens de alma nobre, superior.

Todos enfrentamos adversidades e injustiças. Somos atingidos. Ficamos magoados. Mas a mágoa tem seu tempo, ela tem que passar: ou porque perdoamos, ou porque nos vingamos ou porque aquilo simplesmente deixa de ter importância com o tempo. Mas o ressentimento é uma mágoa que não se supera, é um afeto que petrifica e isola de negociação com a vida. A pessoa parece não querer se esquecer, fazendo um eterno retorno à queixa e ao lamento que acusa o outro. Pois se deveríamos sempre esquecer da dor, por quê aqui não se esquece?

O ressentimento revela um certo prazer nesse movimento de se achar bom e superior e desejar uma vingança velada contra o outro. Convenço-me de que nada fiz de errado e que se está assim ruim é porque alguém me prejudicou. Não assumo que errei nas escolhas, que cometi as faltas inevitáveis da vida, que lutei e perdi, não me admitindo como responsável pelo próprio fracasso.

Temos aqui um primeiro elo com a modernidade: pois que se a modernidade exige de nós sucesso constante, sem submissão ao sofrimento (vá ao médico e trate-se!) e uma postura individualista, onde cada um se faz sozinho por um caminho sem dívidas com antepassados ou semelhantes, surge aqui uma aliança com o ressentimento.
Essa aliança se manifesta na forma de preservação do ideal individualista (que é uma falácia, já que todos nós somos divididos e conflituados) e no caso de fracasso a culpa recai sobre o outro mantendo o indivíduo preservado sem reconhecer sua incompletude.

Como o ressentido julga-se superior e puro, então ele é incapaz de usar a agressividade para se defender e daí a vingança torna-se um fantasma.
Ou seja, “...o ressentimento é uma vingança imaginária e adiada” (Nietzsche).
O ressentido não se esquece da mágoa na esperança de que o outro vá pagar, nem que seja no juízo final e por obra divina e que desta forma não tenha que externar seus sentimentos vingativos.

Sim, os sentimentos vingativos são humanos, essa vontade existe. Como negar que nos causa satisfação que alguém que nos faça tropeçar agora caia sozinho mais adiante?
Mas a pureza do ressentido não lhe permite falar em vingança: ele quer “justiça”, nem que seja a divina, já que ele é o predileto de Deus. Algum dia ele espera ser vingado.

Desta forma o ressentimento produz um “envenenamento psicológico”, pois ao inibir o impulso vingativo-agressivo diante de uma ofensa, ele se volta contra o próprio sujeito. Esse ruminar de mágoas e invejas do outro não pode se confundir com a luta imediata de uma fera que quer se libertar do caçador. O ressentimento é resultado de uma luta inibida que depois torna-se ruminação.

-O grupo
Um grupo social que se revolta contra algo errado não é ressentido – a revolta é vital e pretende mudar a situação. Já o ressentimento é o avesso da revolta, pois não há luta, não mudo nada mas quero que vejam que sou vítima. É passivo como uma criança diante de seus pais que tem que cuidar dela, senão ela se queixa. É, isto sim, a submissão do grupo sem luta que gera o ressentimento.

Aqui vem outra ligação com a modernidade (de Max Scheler), pois a proposta moderna de igualdade de condições entre cidadãos desde o nascimento pode criar uma expectativa que isso se realize magicamente. Então grupos que se sintam prejudicados na escala social, se eles acreditarem que a igualdade se cumpre por si só, eles se tornarão um grupo ressentido. Afinal, a igualdade é um ideal moderno, mas que precisa ser conquistado.

Nas sociedades antigas, os prisioneiros de guerra viravam escravos e isso lhes causava sofrimento, mas eles não eram ressentidos porque isto estava previsto na ordem social deles. Não havia lugar para queixas do tipo “não esperava por isso”, havia apenas o sofrimento da captura. Havia revoltas, lutas, fugas. Mas não ressentimento. É só quando não posso me lembrar que na origem fui covarde e não lutei, quando isso vem e me incomoda é que acuso alguém para me esquecer desse primórdio.

Então vem a pergunta: por quê indivíduos e grupos se submetem e depois se ressentem?
O desenvolvimento da civilização produziu meios de coerção que são um avanço sobre os meios mais primitivos de coerção pela força bruta da espada e que são a introjeção de valores da classe dominante em outras classes sociais. Isto está em todos nós e é uma condição das democracias modernas. E de certa forma todos nós agimos de acordo com valores que só beneficiam a elite da sociedade. Os valores de bom comportamento, de ordem social, essa submissão voluntária às ordens do Estado etc., que teoricamente deveriam beneficiar a todos, nem sempre acontece assim. Há situações tremendamente injustas onde os mais injustiçados compartilham os valores da elite e ainda assim continuam se comportando bem, continuam se submetendo e obedecendo ao patrão.

Então, essa identificação de todos com os ideais que só servem a alguns produz o ressentimento, porque depois que há o reconhecimento da exploração, vem a pergunta: “cadê minha recompensa?” Bem, ela simplesmente não virá ...

-A origem
Essa construção da submissão é bem antiga. Precisamos reconhecer que o cristianismo nos submeteu a todos a uma lei moral que diz que a humildade é um valor superior, no sentido de que se alguém te bate, você deve oferecer a outra face. De modo que exige uma submissão ao sofrimento em nome de que em algum dia, no juízo final, alguém vai reconhecer o seu valor. Construiu-se assim uma exortação à submissão.

Além disso o Estado, como agente de controle social também veio prometendo que irá proteger o cidadão, desde que ele se comporte, ou seja, aqui aparecendo no formato de uma instância domesticadora.
Sob o cristianismo e o Estado moderno todo o impulso vital individual ou coletivo é enfraquecido, criando-se assim sociedade de homens "fracos-voluntários", que acham que ser fraco é ser bom. Neste momento o ressentimento surge como uma operação mental que diz: "... se eu sou fraco é porque sou bom, porque sou humilde, sou cristão".

Consequentemente quem é forte é mau. Mau porque explora. Então cria-se a moral que pune os fortes que tem vitalidade, que não recuam, que sabem que vida quer sempre mais vida. Note que o forte aqui não é o carrasco. É o realizador. Pois em nós convivem o forte e o fraco: o forte arrisca e consegue ou não realizar. O fraco vai pelo lado seguro, pelo lado da pureza moral e se defende narcisicamente, mantendo a ilusão de que é melhor que o outro por ser puro. E o ressentido ao ficar do lado do fraco, espera sempre que algum grande outro o proteja. No final, ele não abre mão de sua dependência e obediência a um Deus ou líder e espera ser recompensado algum dia por isso.

Preso nesse mecanismo, o ressentido não vai prá frente. Ao reconhecer-se como vítima ao invés de derrotado, ele não quer ver sua responsabilidade no dano sofrido e acaba por reivindicar que o seu opressor se enfraqueça. Há um apego infantil a um passado ideal, na forma de um bebê perfeito ao nascer e que depois vai tomando consciência da realidade dos erros cometidos.
Tudo pode começar como uma fantasia dos pais de que seus filhos serão ideais e terão um futuro brilhante. E elas podem acreditar nisso e criar uma expectativa de realização prometida: a criança fixa-se nesse prazer de se ver como potencial que não se realiza em potência vital, onde haveria necessidade dela medir-se.
Esse é o fenômeno da antecipação simbólica: é a expectativa de cumprimento de um direito que não teve que ser conquistado, que outro prometeu e garantiu, fazendo disso uma esperança passiva e que na falta de resultados torna-se uma sensação de usurpação ou privação. Cria-se assim um ressentido. Uma triste armadilha da modernidade.

Nenhum comentário: