
Um filho exprime em nossa sociedade dois tipos de vínculos: o vínculo biológico do apego, que é inato e indiscutível (cuidar do bebê, alimentá-lo, assegurar sua sobrevivência) e o vínculo de parentesco, mais complexo, e relacionado ao amor. O vínculo de parentesco está essencialmente ligado ao desejo de que a cultura se reproduza com os filhos e imortalize nossos valores através dos tempos, superando nossa existência limitada.
Entretanto, a composição da família mudou ao longo dos tempos. Na família tradicional aristocrática, o investimento nos filhos era feito na esperança de que eles levassem adiante a reputação do nome da família, onde o interesse na casta era maior que o interesse individual.
Só mais recentemente, há uns 300 anos, apareceu a família nuclear, onde constituíram-se vínculos conjugais consentidos pela escolha amorosa e não mais impostos pela família. Desta forma, a proposta do vínculo conjugal agora é pela escolha do parceiro, pela monogamia e pela indissolubilidade da união com muito mais atenção concentrada no amor aos filhos, algo inimaginável na época dos gregos e romanos. A família reduz-se em tamanho com a urbanização e os interesses ficam cada vez mais específicos e intensos sobre os filhos, vistos como frágeis e como a única esperança para um futuro melhor.
Quem foi adulto os anos ’60 e ’70, entretanto, pode vivenciar uma época em que essas regras de constituição familiar começaram a ser atacadas. Os movimentos de contracultura e as comunidades hippies (com seus filhos comunitários criados sem apego) propuseram formas alternativas de constituição familiar. O que restou foi a constatação de que o casamento deixa de ser indissolúvel e que a promessa de ligação eterna realiza-se cada vez menos. Começou a aceitar-se que, se o amor acaba, o casamento pode terminar. E que os filhos poderão ter outros pais de criação, hoje uma figura até mais importante que o pai biológico. É outro a dar ordens.
Em paralelo, mecanismos de controle de natalidade associados com desafios profissionais mais intensos para as mulheres transformaram o ato de ter filhos num exercício de vontade, ou seja, podem chegar na hora certa como parte de um plano de vida, sendo assim ainda mais queridos e bem-vindos. Serão crianças mais mimadas e talvez com figuras paternas mudando ao longo do tempo?
Foi então que percebeu-se outra mudança significativa: o estabelecimento de uma crítica à hierarquização da família, onde a aceitação da autoridade dos pais passa a ser questionada muito precocemente pelos filhos. Com isso, nas famílias o respeito ao status de pai migrou para um respeito ao desejo da criança. É como se fosse dada à criança um poder de decisão sobre questões para as quais ela ainda sequer está madura para decidir. Por quê isso está acontecendo?
Uma primeira razão proposta é que o respeito à autoridade anda em ciclos, e após um período consideravelmente repressivo dos anos ’60 e ’70, os pais de hoje parecem querer compensar isso permitindo um avesso de comportamento dos seus filhos totalmente sem respeito à autoridade. Ora, esse é um ponto perigoso: pois a autoridade é como um solo que se formou sobre o que ainda existe e que passou pelo teste do tempo. Sobre esse solo é que podemos fazer nossas acrobacias, mas dependemos da gravidade e do solo para trazer-nos de volta. Veja que só há autoridade sobre o que já aconteceu e se consolidou, nunca sobre o passageiro e fugaz. E o que sufoca é o abuso da autoridade, não a existência dela.
Com isso tudo opera-se uma alteração onde passa a haver uma certa opacidade da função paterna, que não mais se exerce plenamente pelo exercício da autoridade, de mostrar o que é bom sem precisar justificar-se. Os filhos se percebem soltos e desligados por esse canal. O afeto passa a ser demonstrado pelas aparências, pelo material, pelo excesso de mimo e presentes. A criança então, para buscar segurança, passa a tiranizar a relação com os pais e a pensar que a aceitação disso por eles seria a prova de carinho que eles buscam. Soma-se a isso um certo sentimento de culpa dos pais que se reconhecem ausentes na criação dos filhos (porque estão ocupados cuidando de suas carreiras) e sequer permitem efetivamente que a escola cumpra esse papel de autoridade na criação, e pronto, temos o quadro atual preocupante, esgarçante, de filhos totalmente sem controle e sem capacidade de lidar com as contrariedades da vida.
Agora resta vermos como essa autoridade perdeu-se. Qual o mecanismo por trás dessa perda? Pode-se sugerir que é a chamada moral do espetáculo, onde operou-se uma mudança importante nos tempos atuais. Essa mudança colocou em cheque as figuras tradicionais da autoridade, como o bom pai, o bom estadista, o bom político, a boa religião e as substituiu por figuras fugazes criadas pela mídia de massa.
A força de penetração da mídia de massa trás, além de seus benefícios de mercado, um revés inevitável: atua como filtro da realidade, distorcendo valores e fazendo os adultos perderem a auto-confiança, pois a realidade deles passa a ser determinada e alterada rapidamente pelo espetáculo, pelo que está em cartaz. Nós permitimos isso, pareceu confortável, o consumo disso pareceu sedutor.
Em contraste, vamos analisar o que é a pura diversão: é aquilo que abre um lugar de repouso do nosso agir ético. Durante o tempo da diversão, você deixa de pensar e agir eticamente. Se você não fizer assim você torna-se um chato: não aproveita as piadas sobre sexualidade, autoridade e pudor, que são assuntos que temos a obrigação de manter ilesos no cotidiano.
Precisamos pois reconhecer um certo “agente hostil” no ser humano que precisa manifestar-se e que temos de achar um caminho de escape que seja inofensivo: isso é o que se faz no terreno da grande arte e do entretenimento. Pensemos sobre as tragédias gregas: aquelas coisas terríveis, bizarras, mas que todos ao saírem do teatro sabiam que aquilo era diversão e então voltavam para suas vidas cotidianas. Ninguém ao fazer essas tragédias sequer cogitou que aquilo pudesse ser modelo de comportamento para alguém. Esse é o ponto: o modo de viver a diversão não pode migrar para o cotidiano. Mas a mídia de massa subverteu isso e passou a criar modelos de comportamento instantâneo via espetáculo: a cada mês, impõe-se modismos via celebridades pelo espetáculo. Preenche-se assim um vazio na vida via consumo. Sedutor e eficaz.
Dessa forma, operou-se uma transição de figuras de autoridade do virtuoso e da notoriedade para a figura da celebridade fugaz, fascinante e passageira, sem responsabilidade. Isso, bem lembrado: Big Brother Brasil. A vida exemplar passa a ser a visibilidade de um bem estar momentâneo: dizem ‘tenha um sonho e vá em frente, você consegue’. Só isso?
Então, esse processo todo termina por aniquilar a autoridade dos pais com relação aos filhos: como acompanhar o fugaz? Como mostrar o bem se o amiguinho irado do colégio parece estar mais por dentro do que é certo?
Não estou querendo dizer que não houveram ganhos com a formação familiar atual, menos paternalista: de fato, os filhos de hoje são menos oprimidos, menos preconceituosos e até mais ligados afetivamente aos pais que antes, mas precisamos atentar para redefinirmos nossa felicidade afastando-nos o quanto for possível da moral do efêmero. Esses ganhos não precisam eliminar a figura da autoridade. Precisam conviver com ela. Saber que apegamo-nos a corpos mas amamos verdadeiramente apenas idéias e imagens pode ajudar nessa tarefa lenta e constante de reaproximação da razão.
Beaver.
Entretanto, a composição da família mudou ao longo dos tempos. Na família tradicional aristocrática, o investimento nos filhos era feito na esperança de que eles levassem adiante a reputação do nome da família, onde o interesse na casta era maior que o interesse individual.
Só mais recentemente, há uns 300 anos, apareceu a família nuclear, onde constituíram-se vínculos conjugais consentidos pela escolha amorosa e não mais impostos pela família. Desta forma, a proposta do vínculo conjugal agora é pela escolha do parceiro, pela monogamia e pela indissolubilidade da união com muito mais atenção concentrada no amor aos filhos, algo inimaginável na época dos gregos e romanos. A família reduz-se em tamanho com a urbanização e os interesses ficam cada vez mais específicos e intensos sobre os filhos, vistos como frágeis e como a única esperança para um futuro melhor.
Quem foi adulto os anos ’60 e ’70, entretanto, pode vivenciar uma época em que essas regras de constituição familiar começaram a ser atacadas. Os movimentos de contracultura e as comunidades hippies (com seus filhos comunitários criados sem apego) propuseram formas alternativas de constituição familiar. O que restou foi a constatação de que o casamento deixa de ser indissolúvel e que a promessa de ligação eterna realiza-se cada vez menos. Começou a aceitar-se que, se o amor acaba, o casamento pode terminar. E que os filhos poderão ter outros pais de criação, hoje uma figura até mais importante que o pai biológico. É outro a dar ordens.
Em paralelo, mecanismos de controle de natalidade associados com desafios profissionais mais intensos para as mulheres transformaram o ato de ter filhos num exercício de vontade, ou seja, podem chegar na hora certa como parte de um plano de vida, sendo assim ainda mais queridos e bem-vindos. Serão crianças mais mimadas e talvez com figuras paternas mudando ao longo do tempo?
Foi então que percebeu-se outra mudança significativa: o estabelecimento de uma crítica à hierarquização da família, onde a aceitação da autoridade dos pais passa a ser questionada muito precocemente pelos filhos. Com isso, nas famílias o respeito ao status de pai migrou para um respeito ao desejo da criança. É como se fosse dada à criança um poder de decisão sobre questões para as quais ela ainda sequer está madura para decidir. Por quê isso está acontecendo?
Uma primeira razão proposta é que o respeito à autoridade anda em ciclos, e após um período consideravelmente repressivo dos anos ’60 e ’70, os pais de hoje parecem querer compensar isso permitindo um avesso de comportamento dos seus filhos totalmente sem respeito à autoridade. Ora, esse é um ponto perigoso: pois a autoridade é como um solo que se formou sobre o que ainda existe e que passou pelo teste do tempo. Sobre esse solo é que podemos fazer nossas acrobacias, mas dependemos da gravidade e do solo para trazer-nos de volta. Veja que só há autoridade sobre o que já aconteceu e se consolidou, nunca sobre o passageiro e fugaz. E o que sufoca é o abuso da autoridade, não a existência dela.
Com isso tudo opera-se uma alteração onde passa a haver uma certa opacidade da função paterna, que não mais se exerce plenamente pelo exercício da autoridade, de mostrar o que é bom sem precisar justificar-se. Os filhos se percebem soltos e desligados por esse canal. O afeto passa a ser demonstrado pelas aparências, pelo material, pelo excesso de mimo e presentes. A criança então, para buscar segurança, passa a tiranizar a relação com os pais e a pensar que a aceitação disso por eles seria a prova de carinho que eles buscam. Soma-se a isso um certo sentimento de culpa dos pais que se reconhecem ausentes na criação dos filhos (porque estão ocupados cuidando de suas carreiras) e sequer permitem efetivamente que a escola cumpra esse papel de autoridade na criação, e pronto, temos o quadro atual preocupante, esgarçante, de filhos totalmente sem controle e sem capacidade de lidar com as contrariedades da vida.
Agora resta vermos como essa autoridade perdeu-se. Qual o mecanismo por trás dessa perda? Pode-se sugerir que é a chamada moral do espetáculo, onde operou-se uma mudança importante nos tempos atuais. Essa mudança colocou em cheque as figuras tradicionais da autoridade, como o bom pai, o bom estadista, o bom político, a boa religião e as substituiu por figuras fugazes criadas pela mídia de massa.
A força de penetração da mídia de massa trás, além de seus benefícios de mercado, um revés inevitável: atua como filtro da realidade, distorcendo valores e fazendo os adultos perderem a auto-confiança, pois a realidade deles passa a ser determinada e alterada rapidamente pelo espetáculo, pelo que está em cartaz. Nós permitimos isso, pareceu confortável, o consumo disso pareceu sedutor.
Em contraste, vamos analisar o que é a pura diversão: é aquilo que abre um lugar de repouso do nosso agir ético. Durante o tempo da diversão, você deixa de pensar e agir eticamente. Se você não fizer assim você torna-se um chato: não aproveita as piadas sobre sexualidade, autoridade e pudor, que são assuntos que temos a obrigação de manter ilesos no cotidiano.
Precisamos pois reconhecer um certo “agente hostil” no ser humano que precisa manifestar-se e que temos de achar um caminho de escape que seja inofensivo: isso é o que se faz no terreno da grande arte e do entretenimento. Pensemos sobre as tragédias gregas: aquelas coisas terríveis, bizarras, mas que todos ao saírem do teatro sabiam que aquilo era diversão e então voltavam para suas vidas cotidianas. Ninguém ao fazer essas tragédias sequer cogitou que aquilo pudesse ser modelo de comportamento para alguém. Esse é o ponto: o modo de viver a diversão não pode migrar para o cotidiano. Mas a mídia de massa subverteu isso e passou a criar modelos de comportamento instantâneo via espetáculo: a cada mês, impõe-se modismos via celebridades pelo espetáculo. Preenche-se assim um vazio na vida via consumo. Sedutor e eficaz.
Dessa forma, operou-se uma transição de figuras de autoridade do virtuoso e da notoriedade para a figura da celebridade fugaz, fascinante e passageira, sem responsabilidade. Isso, bem lembrado: Big Brother Brasil. A vida exemplar passa a ser a visibilidade de um bem estar momentâneo: dizem ‘tenha um sonho e vá em frente, você consegue’. Só isso?
Então, esse processo todo termina por aniquilar a autoridade dos pais com relação aos filhos: como acompanhar o fugaz? Como mostrar o bem se o amiguinho irado do colégio parece estar mais por dentro do que é certo?
Não estou querendo dizer que não houveram ganhos com a formação familiar atual, menos paternalista: de fato, os filhos de hoje são menos oprimidos, menos preconceituosos e até mais ligados afetivamente aos pais que antes, mas precisamos atentar para redefinirmos nossa felicidade afastando-nos o quanto for possível da moral do efêmero. Esses ganhos não precisam eliminar a figura da autoridade. Precisam conviver com ela. Saber que apegamo-nos a corpos mas amamos verdadeiramente apenas idéias e imagens pode ajudar nessa tarefa lenta e constante de reaproximação da razão.
Beaver.
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