17 de jul. de 2013

Chapéu e traição

Romântico não significa uma coisa inventada, artificial, sem semelhança com a vida. Porque é assim mesmo que é composta a vida humana. Ela é composta como uma partitura musical. O ser humano, guiado pelo sentido da beleza, transpõe o acontecimento fortuito (uma música de Beethoven, a morte numa estação) para fazer disso um tema que, em seguida, fará parte da partitura de sua vida. Voltará ao tema, repetindo-o, modificando-o, desenvolvendo-o e transpondo-o, como faz um compositor com os temas de sua sonata.

Isso ele o faz ao longo da vida, amadurecendo sua partitura a ponto de torná-la muitas vezes incompreensível a quem chega depois. Enquanto as pessoas são ainda mais ou menos jovens e a partitura de suas vidas está somente nos primeiros compassos, elas podem fazer juntas a composição e trocar os temas, mas quando se encontram numa idade mais madura, suas partituras musicais estão mais ou menos terminadas, e cada palavra, cada objeto, significa algo de diferente na partitura do outro.

Por isso, quando ela colocou só o chapéu, senti-me constrangido como se ela estivesse falando comigo numa língua desconhecida. Não achava o gesto obsceno, nem tampouco sentimental; era somente um gesto incompreensível e desconcertante pela falta de significado. Aprendi ali que passaria por isso ainda muitas vezes na vida que me restava e que não podia mais achar que isso era traição.
(Kundera, adapted)

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