19 de nov. de 2012

Talvez na próxima transgressão

Os mais velhos de nós foram criados ainda sob o paradigma de sociedade industrial, onde há uma ética do trabalho como vocação que dá identidade. A produção e acumulação são os fins em si mesmos, através de especializações bastante claras nas funções de cada um. Nesse mundo, faz todo sentido planejar e buscar a solução antecipada de problemas -- já que o funcionamento regular do mecanismo é a premissa de máxima eficiência social.

Contrastando com isso, estamos numa nova época fascinada pela aceleração na circulação e transformação de mercadorias e serviçoes em dinheiro e vice-versa através de um sistema de equivalência cada vez mais amplo. Torna-se necessário uma certa plasticidade, uma certa indeterminação em nós que vai abrir muito o leque de opções para obsolescência controlada dos símbolos de consumo.

E com uma hábil administração dessa insatisfação constante de todos com a situação presente é que se obtém o elemento fundamental do funcionamento social: esse consumo sempre acelerado e que faz o capital perder sua qualidade narrativa, dissolvendo os objetos em circulação de maneira incessante, anestesiante.
A única coisa real passa a ser a colisão inevitável do que circula cada vez mais rápido, num momento de crise, choque, dissolução, morte.

A administração de crises sucessivas é portanto o modo fundamental do novo tempo, o vetor que nos dá uma direção a seguir, uma recuperação redentora. Um gozo que só se encontra na transgressão, mas nem sempre completo desta vez. É necessário uma transgressão sempre maior.

Maybe next time, baby. (Crash, D. Cronemberg)

16 de nov. de 2012

A benção beneditina


O primeiro esforço para constituir uma mecanização desvinculada da forma antiga de massificação humana, feita pelos impérios desde as pirâmides até as construções romanas, veio com o cristianismo.

Pela primeira vez, foram adicionados valores morais e finalidade social ao trabalho, que transcenderam as soluções existentes baseadas na escravidão e no castigo de grandes contingentes humanos submetidos a profecias divinas ou a organizações militares. 

O lugar onde se viu mais claramente esta mudança foi com os cistercienses, depois chamados de beneditinos, que passaram a voluntariar um pequeno número de homens para dedicar-se aos monastérios, isso em torno do século VI. Esses homens estavam se retirando da confusão da civilização então decadente de grandes centros urbanos como Roma e Alexandria e estabelecendo um novo modo de vida dedicado à salvação de suas almas -- através de pequenas comunidades organizadas para atividades diárias com uma regularidade de performance e previsibilidade até então desconhecidas.

Entre as obrigações estavam as de rezar, obedecer aos superiores, aceitar a pobreza e vigiar a conduta dos outros segunda as rígidas regras do monastério. Dessa forma, foram se formando as bases do que até hoje seguimos em nossas atividades regradas e hierárquicas. Contrariamente ao que mostrou Max Weber, foi muito antes do Calvinismo que se formaram as bases do trabalho responsável como valor moral. Os beneditinos de fato criaram as bases para o trabalho regulado pelo tempo, até hoje simbolizado pela batidas dos sinos de relógios cristãos. 

Os trabalhos no monastérios eram variados e intercalados com períodos de descanso e meditação. Acredita-se que a mecanização de tarefas rotineiras com o auxílio de máquinas como moinhos tenha surgido aqui como forma de liberar esforço dos monges para as atividades mentais e religiosas que de outra forma seriam impossíveis ao trabalhador esgotado de outrora.

Embora rígida, a disciplina trazia seus benefícios: os monges tinham tratamento médico garantido, boa alimentação e assistência na velhice. Em troca, os monastérios foram importantes centros de desenvolvimento da cultura: trabalho, estudo e preces andavam juntos -- na busca de eficiência e perfeição que se tornariam base para o desenvolvimento do capitalismo.

3 de nov. de 2012

Profeta Andarilho


"Nenhum homem é profeta em sua própria terra".

Enquanto há, naturalmente, casos de pessoas que se mostram resistentes em aceitar lições e ajuda de estranhos, tal resistência é ainda mais evidente, como regra geral, naqueles para quem uma inovação é proposta por um vizinho ou parente, inovação essa a qual ele próprio não foi capaz de descobrir.

Se um colega de trabalho, vizinho ou colega de escola aparece com uma invenção ou descoberta cujo valor e qualidade são inquestionáveis, isso vai causar em mim uma inveja maior do que se a idéia nova vier de um estranho: pois neste segundo caso sempre será possível que eu me console pensando que o estranho teve oportunidades e experiências anteriores as quais eu não tive acesso e que foram importantes na sua descoberta.

Sua superioridade não será tão esmagadora como será reconhecer a descoberta de alguém do meu círculo, que me fará pensar: "Por que eu não pensei nisso antes? Como ele conseguiu isso antes de mim?"

Dessa forma, há um fator universal de reprimenda local contra quem se faz desigual através de um feito intelectual: com isso não é difícil imaginar que há um incentivo para o elemento criativo deixar o lar e migrar, não por genuína vontade de aventura ou ganhos, mas em busca de locais estranhos onde possa haver uma aceitação de suas descobertas.

Se considerarmos que a inovação contribui para a evolução das culturas e civilizações e que a mobilidade horizontal é fundamental para a dispersão do conhecimento novo, então a troca de ambiente em busca de melhores condições de reconhecimento pode ter suas raízes numa estratégia de luta contra a inveja do grupo local.