20 de set. de 2009

Civilização


Em que reside o valor peculiar das idéias religiosas?

A civilização exerce uma pressão pelas renúncias do instinto animal. Se imaginarmos suspensas as suas proibições e se então se pudesse tomar a mulher que se quisesse como objeto sexual; se fosse possível matar sem hesitação o rival ao amor dela ou qualquer pessoa que se colocasse no caminho, e se, também, se pudesse levar consigo qualquer dos pertences de outro homem sem pedir licença, quão esplêndida, que sucessão de satisfações seria a vida!

A verdade é que logo nos deparamos com a primeira dificuldade: todos os outros têm exatamente os mesmos desejos que eu, e não me tratarão com mais consideração do que eu os trato. Assim, na realidade, só uma única pessoa se poderia tornar irrestritamente feliz através de uma tal remoção das restrições da civilização, e essa pessoa seria um tirano, um ditador, que se tivesse apoderado de todos os meios de poder.

O que então restaria seria um estado de natureza, muito mais difícil de suportar. É verdade que a natureza não exigiria de nós quaisquer restrições dos instintos, nos deixaria proceder como bem quisés­semos; contudo, ela possui seu próprio método, particularmente eficiente, de nos coibir. Ela nos destrói, fria, cruel e incansavelmente. Foi precisamente por causa dos perigos com que a natureza nos ameaça que nos reunimos e criamos a civilização, a qual também, entre outras coisas, se destina a tornar possível nossa vida comunal, pois a principal missão da civilização é nos defender contra a natureza.

Todos sabemos que, de diversas maneiras, a civilização já faz isso bastante bem, e é claro que, na medida em que o tempo passa, o fará muito melhor. Ninguém, no entanto, alimenta a ilusão de que a natureza já foi vencida, e poucos se atrevem a ter esperanças de que um dia ela se submeta inteiramente ao homem. Há os elementos, que parecem não se submeter a qual­quer controle humano: a terra, que treme, se escancara e sepulta toda a vida humana e suas obras; a água, que inunda e afoga tudo num torvelinho; as tempestades, que arrastam tudo o que se lhes antepõe e, finalmente, o penoso enigma da morte, contra o qual remédio algum foi encontrado e provavelmente nunca será. É com essas forças que a natureza se ergue contra nós, majestosa, cruel e inexorável; uma vez mais nos traz à mente nossa fraqueza e desamparo, de que pensávamos ter fugido através do trabalho de civilização.

Tal como para a humanidade em geral, também para o indivíduo a vida é difícil de suportar. A civilização de que participa impõe-lhe uma certa quantidade de privação, e outros homens lhe trazem outro tanto de sofrimen­to, seja apesar dos preceitos de sua civilização, seja por causa das imperfei­ções dela. A isso se acrescentam os danos que a natureza indomada, o que ele chama de Destino, lhe inflige.

Muito já se conseguiu com um primeiro passo: a humanização da natureza. De forças e destinos impessoais ninguém pode aproximar-se; permanecem vividamente distantes. Contudo, se nos elementos se enfurecerem paixões da mesma forma que em nossas próprias almas, se a própria morte não for algo espontâneo, mas o ato violento de uma Vontade maligna, se tudo na natureza forem Seres à nossa volta, do mesmo tipo que conhecemos em nossa própria sociedade, então poderemos respirar livremente, sentir-nos em casa no sobrenatural e lidar com nossa insensata ansiedade através de meios psíquicos.

Contra esses violentos super-homens externos podemos aplicar os mesmos métodos que empregamos em nossa própria sociedade; podemos tentar conjurá-los, apaziguá-los, suborná-los e, influenciando-os assim, despojá-los de uma parte de seu poder.

No decorrer do tempo, fizeram-se as primeiras observações de regulari­dade e conformidade à lei nos fenômenos naturais, e, com isso, as forças da natureza perderam seus traços humanos. O desamparo do homem, porém, permanece e, junto com ele, seu anseio pelo pai e pelos deuses. Estes mantêm sua tríplice missão: exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e compensá-tos pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs.

Ficou sendo então tarefa dos deuses nivelar os defeitos e os males da civilização, assistir os sofrimentos que os homens infligem uns aos outros em sua vida em conjunto e vigiar o cumprimento dos preceitos da civilização, a que os homens obedecem de modo tão imperfeito. Esses próprios preceitos foram creditados com uma origem divina; foram elevados além da sociedade humana e estendidos à natureza e ao universo.

Foi assim que se criou um cabedal de idéias, nascido da necessidade que tem o homem de tornar tolerável seu desamparo, e construído com o material das lembranças do desamparo de sua própria infância e da infância da raça humana. Pode-se perceber claramente que a posse dessas idéias o protege em dois sentidos: contra os perigos da natureza e do Destino, e contra os danos que o ameaçam por parte da própria sociedade humana. (Freud)

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