29 de jun. de 2008

Da origem das religiões


As invenções autênticas dos fundadores de religião são:

--Primeiramente, estabelecer um modo de vida e hábitos cotidianos determinados, que atuem como disciplina da vontade) e, ao mesmo tempo, eliminem o aborrecimento;
-- Em segundo lugar, oferecer a esta vida uma interpretação que glorifique esta regra como um objeto de mais alto preço e que dele faça um bem supremo pelo qual se possa combater e, se necessário, dar a vida.

Realmente, destas duas invenções, a segunda é a mais importante: a primeira, o gênero de vida, preexistia em geral ao regulamento, mas no meio de outros e sem conseqüências do valor que continha.
A importância e a originalidade do fundador de religião manifesta-se ordinariamente no fato de ele ver e escolher este gênero de existência, no fato de ser o primeiro a adivinhar aquilo que se pode fazer, e como se pode interpretá-lo.

Jesus (ou São Paulo), por exemplo: Jesus enxergou à sua volta a vida da gente humilde da província romana: interpretou-a, carregou-a, com um sentido e um valor supremos, e deu-lhe com isso coragem para desprezar qualquer outro gênero de existência, com a secreta e subterrânea confiança em si que incha incessantemente até estar pronto, um belo dia, a "vencer o mundo" (ou seja, Roma e as classes elevadas de todo o Império).

Buda, da mesma maneira, encontrou disseminada em todas as classes do seu povo, esta categoria de pessoas que são boas, benevolentes (sobretudo inofensivas) em razão de uma preguiça natural e, por preguiça também, vivem na abstinência, quase sem nenhuma necessidade. Compreendeu que esta espécie de pessoas cairia inevitavelmente, com toda a força da sua inércia, na crença que prometesse impedir a volta das misérias terrestres (isto é, do trabalho, da ação em geral); a compreensão deste fato foi o seu gênio.

Para fundar uma religião é necessário possuir uma infalibilidade psicológica que saiba detectar uma certa categoria média de almas que ainda não reconheceram seu parentesco. É o fundador de religião que as reúne; portanto, a fundação de uma religião torna-se sempre uma longa festa de "reconhecimento". (Gaia Ciência, #353)

14 de jun. de 2008

Anseio



Não estava preparado para tê-la e nem para perdê-la. Por que você tem tanta dificuldade em aceitar?

A paixão deixa, quando passa, uma obscura saudade de si própria e, enquanto desvanece, ainda lança um olhar sedutor. Ser chicoteado por ela deve ter-nos propiciado uma espécie de prazer. Em comparação com ela, as sensações mais moderadas parecem vazias; preferimos, ao que parece, o desprazer mais violento ao prazer insípido. Só parece tragédia quando é conosco.

Não tinha notado que tão logo alguém deve obrigar-se, no trato ou na conversa, a prestar atenção, temos uma prova válida de que não nos ama mais. (Humano, demasiado humano)




7 de jun. de 2008

Doutrina do Poder


Ao fazer o bem e o mal aos outros exercitamos o nosso poder sobre eles - é, nesse caso, o que queremos!

Fazemos mal a quem devemos fazer sentir nosso poder, pois o sofrimento é um meio muito mais sensível, para esse fim, do que o prazer: o sofrimento procura sempre a sua causa enquanto o prazer mostra inclinação para se bastar a si próprio e a não olhar para trás.

Ao fazer bem ou ao desejarmos o bem exercemos o nosso poder sobre aqueles que, de alguma forma, já estão na nossa dependência (quer dizer que se habituaram a pensar em nós como suas causas); queremos aumentar o seu poder porque assim aumentamos o nosso, ou queremos mostrar-lhes a vantagem que há em estar em nosso poder; com isso ficarão mais satisfeitos com a sua situação e mais hostis aos inimigos do nosso poder, mais prontos a combatê-los.

Fazermos sacrifícios para fazer o bem ou o mal não altera em nada o valor definitivo das nossas ações; mesmo se arriscarmos a nossa vida, como o mártir pela sua causa, é um sacrifício que fazemos à nossa necessidade de poder, ou com a finalidade de conservar o nosso sentimento de poder.

Indubitavelmente, é raro que o estado que acompanha o gesto de fazer mal seja tão agradável como aquele que acompanha o gesto de fazer bem; trata-se de um sinal que revela que ainda nos falta poder ou que revela o nosso desgosto diante desta pobreza, anunciando novos perigos e novas incertezas para o nosso capital de poder, mantendo o nosso horizonte velado por perspectivas de vingança, escárnio, punição, malogro.

Somente para os mais ávidos do sentimento de poder pode haver algum prazer em imprimir ao recalcitrante o selo do seu domínio; para aqueles que só vêem nisso aborrecimento, é um desprazer o espetáculo de um ser já submetido (tornado objeto de benevolência).

Trata-se de saber como o homem acostumou-se a temperar sua vida; é sempre uma questão de gosto: quer que o crescimento de poder seja lento ou brusco, seguro ou perigoso? Procura-se esta ou aquela forma conforme a inclinação do nosso temperamento.

Uma presa fácil, para as naturezas orgulhosas, é algo de desprezível; só experimentam um sentimento de bem-estar diante de homens íntegros que poderiam tornar-se seus inimigos, e diante de todas as posses seriam dificilmente acessíveis; são muitas vezes duros, para aquele que sofre, porque não o julgam digno do seu esforço e da sua altivez, mas mostram-se tanto mais corteses para com os seus semelhantes com os quais a luta seria certamente honrosa, se aparecesse ocasião para isso.

Foi sob o efeito do sentimento de bem-estar que os homens fortes se acostumaram a usar uns para com os outros de uma delicadeza requintada. A piedade é o sentimento mais agradável para aqueles que são pouco orgulhoso e que não têm possibilidades de fazer grandes conquistas: a presa fácil – e qualquer ser sofredor é presa fácil – é coisa que os encanta. Louva-se a piedade como sendo a virtude dos fracos de vida alegre.

6 de jun. de 2008

Mantendo a espécie


Até hoje, foram os espíritos mais fortes e os espíritos mais malignos que obrigaram a humanidade a fazer mais progressos: inflamaram constantemente as paixões adormecidas, pois todas as sociedades policiadas as adormecem, eles despertaram constantemente o espírito de comparação e de contradição, o gosto pelo novo, pelo arriscado, pelo inexperimentado; obrigaram o homem a contrapor opiniões a opiniões, modelos a modelos.

Muitas das vezes pelas armas, derrubando os marcos fronteiriços, violando as crenças, mas também com novas religiões e novas morais. A "maldade" que se encontra em todos os professores do novo, em todos os pregadores de coisas novas, é a mesma que desacredita o conquistador do novo e em todas as circunstâncias é o mal, pois é aquilo que deseja conquistar, derrubar os marcos fronteiriços, abater as antigas crenças; somente o antigo é o bem!

Os homens de bem em todas as épocas, são aqueles que implantam profundamente as velhas idéias para lhes dar fruto, são os cultivadores do espírito. Mas todo o terreno acaba
por se esgotar, é preciso sempre que o arado do mal volte.

Existe agora uma teoria da moral, uma doutrina fundamentalmente errada: de acordo com ela os juízos de "bem" e "mal" exprimem um total de experiências relativas ao que é "oportuno", e ao que é "inoportuno"; que se chama "bem" ao que conserva a espécie, e "mal" àquilo que a prejudica. Todavia, os maus instintos são na realidade tão apropriados ao fim, tão úteis à conservação da espécie e tão indispensáveis quanto os bons: somente a sua função é diferente.