29 de jun. de 2013

Adeus, velhos.


Penso nos gestos esquecidos, nos muitos trejeitos e palavras dos avós, pouco a pouco perdidos, não herdados, caídos um atrás do outro da árvore do tempo.

Esta noite encontrei uma vela sobre a mesa e, para brincar, acendi-a e andei com ela pelo corredor. O movimento do ar ia apagá-la, e então vi a minha mão esquerda levantar-se sozinha, abrigando e protegendo a chama como uma cortina viva que afastasse o ar.

Enquanto o fogo se endireitava outra vez alerta, pensei que esse gesto fora o gesto de todos nós (pensei nós e pensei bem, ou senti bem) durante milhares de anos, durante a Idade do Fogo, até que a trocaram pela luz elétrica. Imaginei outros gestos, o gesto das mulheres levantando a ponta da saia, o gesto dos homens
procurando o punho da espada.

Como as palavras perdidas da infância, ouvidas pela última vez na boca dos velhos que iam morrendo. Em minha casa já ninguém diz "a cômoda de cânfora", já ninguém fala das trempes. Como as músicas do momento, as valsas dos anos 20, as polcas que enterneciam nossos avós.

Penso nesses objetos, nessas caixas, nesses utensílios que aparecem às vezes em galpões, em cozinhas ou esconderijos, e cujo uso já ninguém é capaz de explicar. Vaidade de crer que compreendemos as obras do tempo: o tempo enterra seus mortos e guarda as chaves. Somente nos sonhos, na poesia, no jogo —  acender uma vela, andar com ela pelo corredor —, aproximamo-nos às vezes do que fomos antes de ser isto que ninguém sabe se somos.
(Julio Cortázar, Rayuela)

23 de jun. de 2013

Nem divino, nem diabólico


Quando eu corro, eu tento me equilibrar naquela linha que divide a pista, e eu corro com dificuldade porque eu não quero pisar fora da linha, sabe, não quero pisar nem de um lado nem do outro.

Aí eu imagino que essa linha é o topo de uma longa cadeia de montanhas, que prá direita e prá esquerda existem abismos.

Se você acredita que a vida trata-se de uma uma linha desenhada numa pista plana, você fica calmo, seguro; mas se você pensa que tá numa linha que divide dois abismos, daí você começa a tremer. Você percebe que você está constantemente correndo perigo de vida.

Alguns têm um defeito de nascença, que os fazem nunca esquecer do abismo. Mas isso é só humano. (Felipe Hirsch)

4 de jun. de 2013

Alma gêmea em rede

Alma gêmea parece mesmo uma palavra estranha. Conexões, e não uma conexão em particular, é a palavra de ordem numa rede. E estamos nos conectando com tecnologia e não exatamente com pessoas. E, afinal, ninguém pode dar a atenção constante que a tecnologia pode. É um argumento imbatível.

Lembre que na vida real não temos tantos estímulos. Só podemos conversar com um número limitado de pessoas num dia. Tecnologia, então, seria a nossa nova alma gêmea, nos dizendo que nos entende, que estamos conectados, que alguém se importa, que não estamos sós.

Mas será que em algum momento, como humanos, teremos ainda que identificar a alma gêmea, ou duas ou três, pois o resto do mundo será um amontoado de atenções mecânicas recheadas de infâmias, um milhão de corridas para ganhar de outros nisso ou naquilo e com uma nova corrida começando assim que outra termina?

Será que nessa busca constante por atenção e fama, será preciso mais do que nunca encontrar alguém que não se importe se você está vencendo, quantos seguidores você tem ou o que você disse online?

Por enquanto dizer alma gêmea para alguém não é em absoluto a respeito de alguma relação real mas um simples desejo de que isso exista, de que exista algum substrato real além da tela -- para nos alimentar independente de quanta vida digital busquemos.

Talvez um dia a expressão alma gêmea, como amigo, seja uma categoria a mais nas relações em rede e signifique nem mais ou nem menos que isso. Um outro real.
(adaptado de The Boys King, K. Losse)