20 de jul. de 2008

Fato Moral


A moral se nos apresenta como um conjunto de regras de conduta.

Mas existem outras regras além das regras morais, que nos prescrevem maneiras de agir. Quando violadas, estas resultam em consequências penosas automáticas, como é o caso com regras de higiene: se eu as desrespeito, adoeço. Ao analisar o ato, pode-se por antecipação saber a possível consequencia que a violação implica.

Mas quando eu violo a regra que me ordena não matar, existe aí entre o ato e a consequência uma heterogeneidade completa: é impossível abstrair analiticamente da noção de morte qual será a censura. O vínculo que reúne o ato e a consequência é, aqui, um vínculo sintético, uma sanção.

Não é a natureza intrínseca do ato que acarreta a sanção, mas a não conformidade com e regre que o proscreve. Assim o homicídio, infame em tempos normais, não o é em tempos de guerra porque aí não existe mais princípio que o interdite.

Chegamos portantoa uma noção mais profunda da sanção: é uma consequência do ato, resultante não do conteúdo do ato, mas do ato não ser conforme a uma regra preestabelecida, à qual estamos obrigados a seguir.

Mas existe um outro traço de todo ato moral, que é a sua desejabilidade, pois é difícil aceitar que vamos perseguir um fim que nos deixa indiferentes, que requer o esforço de seguir uma ordem, a menos que isso no fundo nos pareça bom, que nos atinja em nossa sensibilidade. É preciso, portanto, que exista um segundo traço no ato moral, que é ser desejado e desejável.

Dessa forma, existem atos que são praticados quase que exclusivamente por entusiasmo e outros onde a contribuição do dever é maior. Esses dois elementos, combinados, tem um quê de paradoxal: eles refletem a dualidade que há entre um elemento que nos obriga, que é penoso, e outro que nos transcende, que nos trás entusiamo ao ser realizado, como que satisfazendo um ser superior.

Para fazer perceber como a noção do fato moral pode apresentar esses dois traços, em parte contraditórios, comparemos à noção do sagrado. O sagrado é, num sentido, o ser proibido, que não ousa violar; é também ser bom, amado, procurado.

A personalidade humana é coisa sagrada: não se ousa violá-la ao mesmo tempo em que o bem por excelência é a comunhão com o outro.

9 de jul. de 2008

Na Origem


Na origem, os deuses não são distintos do universo, ou, antes, não há deuses, mas apenas seres sagrados, sem que o caráter sagrado de que se revestem seja relacionado a alguma entidade exterior, como sendo sua fonte.

Os animais ou os vegetais da espécie que servem de totem ao clã e são o objeto do culto, mas não é que um princípio sui generis venha comunicar-lhes do exterior sua natureza divina. Essa natureza lhes é intrínseca; eles são divinos por si próprios. Mas, pouco a pouco, as forças religiosas se destacam das coisas de que, a princípio, não eram mais que atributos.

O politeísmo greco-latino, que é uma forma mais elevada e mais bem organizada do animismo, assinala um novo progresso no sentido da transcendência. A residência dos deuses se torna mais nitidamente distinta da dos homens. Retirados nas alturas misteriosas do Olimpo ou nas profundezas da terra, não intervêm mais pessoalmente nos assuntos humanos, a não ser de maneira bastante intermitente.

Mas é apenas com o cristianismo que Deus sai definitivamente do espaço; seu reino não é mais deste mundo; a dissociacão entre a natureza e o divino é, inclusive, tão completa que degenera em antagonismo. Ao mesmo tempo, a noção da divindade se torna mais geral e mais abstrata, pois é formada não de sensações, como no princípio, mas de idéias. O Deus da humanidade tem, necessariamente, menos compreensão que os deuses da cidade ou do clã.

Ora, quanto mais a consciência comum se torna geral, mais cede lugar às variações individuais. Quando Deus está longe das coisas e dos homens, sua ação não se dá mais em todos os instantes e já não se estende a tudo.

De fixo, só há as regras abstratas, que podem ser livremente aplicadas de maneiras muito diferentes. Mas elas não têm mais nem a mesma ascendência, nem a mesma força de resistência. Com efeito, se as práticas e as fórmulas, quando precisas, determinam o pensamento e os movimentos com uma necessidade análoga à dos reflexos, ao contrário, esses princípios gerais só podem transportar-se aos fatos com o concurso da inteligência.

Ora, uma vez a reflexão despertada, não é fácil contê-la. Quando ela adquire forças, desenvolve-se espontaneamente além dos limites que lhe foram atribuídos.

Começa-se colocando alguns artigos de fé acima da discussão, depois a discussão se estende até eles. Quer-se entendê-los, pergunta-se sua razão de ser e, de certo modo, eles passam por essa prova, deixando nela uma parte de sua força: porque as idéias refletidas nunca têm a mesma força coerciva dos instintos; assim é que movimentos que foram deliberados não têm a instantaneidade dos movimentos involuntários.

Por se tornar mais racional, a consciência coletiva se torna, pois, menos imperativa e, também por essa razão, ela incomoda menos o livre desenvolvimento das variedades individuais.