23 de fev. de 2008

Crenças



O que realmente significa acreditar em algo? Como lidar com a dúvida, que sempre assolou até mesmo importantes figuras religiosas em sua fé? Será que os seguidores do comunismo realmente acreditavam que o partido não faria nada de errado ou eles foram condicionados a pensar assim? Como diferenciar o pessimista nato daquele administrador que age prudentemente como se o pior cenário fosse o real?

Na prática, acreditar em algo costuma ser menos rígido do que a palavra sugere. Eu acredito que amanhã vai chover, mas sei que posso estar errado: entretanto, eu sei que estou casado, além de acreditar nisso. Desta forma, saber é usualmente definido como uma crença justificada na verdade, através do corpo de evidências que o agente possui. Mas ainda resta sempre alguma incerteza, por menor que seja, sobre o que seja, de fato, a verdade localizada no mundo.

Isso nos leva a 4 distintas formas de cognição do mundo das alternativas de crença:
- a certeza;
- o risco, quando as possibilidades estão ligadas a probabilidades devido a eventos passados ou algum julgamento;
- incerteza, quando não é possível atribuir probabilidades às alternativas;
- ignorância, quando sequer as alternativas são conhecidas.

Desses modos, vamos comentar algo sobre os dois primeiros, mais comuns.
O primeiro ponto é a nossa tendência (América Latina) de sempre ter alguma opinião sobre as coisas, mesmo que sem base de informação para isso. Parece que admitir-se sem opinião iguala-se a algum tipo de fracasso. Outra falha é a de atribuir aos eventos alguma causa intencional de alguém ou alguma coisa, quando na verdade aquilo foi somente devido ao acaso. São coisas que levam à certeza desastrosa com pouco conhecimento, quando admitir a situação real de ignorância seria mais seguro para todos.

Outro ramo de problemas está ligado a erros na atribuição de probabilidades aos eventos de risco. Uma causa é o excesso de informação conflitante, que coloca um desafio de julgamento que poucas pessoas vencem. Ao confiar na intuição, acabam por concluir baseado em quadros de referência pouco racionais, adequados apenas para situações de emergência.


Em situações normais, a intuição acaba sendo enganada por fenômenos curiosos e muito frequentes. Um deles é a heurística de pensamento, onde fatos recentes e mais facilmente explicáveis ganham importância desmedida e levam a conclusões totalmente erradas.
Outro deles é a “pensamento mágico”, onde um forte desejo pelo fato impede a busca por mais evidências e acaba por tornar verdade na cabeça do agente algo que ele simplesmente deseja muito que seja assim.

Uma aplicação brilhante disso ocorreu no Calvinismo. Diferentemente dos católicos, que precisam conquistar o céu, os calvinistas tem seu destino predeterminado. Dado a crença dos calvinistas na predestinação, pareceria haver nenhuma razão para que eles não se deixassem levar por todo o tipo de prazer mundano. Entretanto, como observado por Weber, os calvinistas de fato adotaram um estilo de vida austera. A idéia dos calvinistas é que os eleitos seriam distinguidos pela sua vontade de vencer, o que tornou essa vontade (desejo de vencer) numa realidade de vida ascética.

Outro mecanismo, o de racionalização, atua para diminuir a dissonância entre o que pensamos e o que fazemos. Dessa forma, alguma ação já realizada por qualquer motivo induz a uma crença concordante, mas não autêntica. Outro linha de erro é a “auto-fraude”, quando nos convencemos de algo nitidamente falso: olho no espelho e não me vejo engordando; sinto mal estar mas não considero que esteja doente. Esse mecanismo de enganar, tão comum quando aplicados aos outros, também ocorre frequentemente com nós mesmos, levando a crenças totalmente distorcidas.

As crenças distorcidas são uma importante base de explicação para ações indevidas, sob o ponto de vistas da racionalidade. Uma vez que o agente esteja convencido de que sua crença está baseada em evidências bem suportadas pela suas buscas de informação, fica realmente difícil que ele perceba e corrija seus erros.

10 de fev. de 2008

Melancolia



O suicídio é um tema sempre presente na literatura. Nela, os personagens buscam a morte voluntária motivados por razões aparentemente individuais. O amor impossível e/ou não correspondido é um dos seus motes preferidos. A fonte da literatura é a realidade, o contexto histórico, cultural, social, político e econômico em cada época e espaço territorial. Assim, para além das motivações individuais que induzem ao suicídio, é preciso compreender as sociedades nas quais se inserem estes indivíduos, isto é, o espaço-tempo. E isto nem sempre a literatura fornece em sua plenitude: é preciso recorrer à história, à sociologia, etc. Contudo, a literatura continua importante para a compreensão da alma humana, dos seus dilemas universais. Neste sentido, ela nos permite atingir o substrato dos indivíduos imaginários e nos ajuda a compreender melhor os indivíduos reais.

Seja o amor não correspondido, o apego ao trabalho ou outra causa qualquer, os exemplos literários apresentam-nos a morte voluntária como resultante de motivações individuais. E assim também se dá quando se trata de casos reais de suicídio.

O jovem que se mata por amor; a jovem que deixa dúvidas se realmente tinha intenção de dar cabo à vida; o velho funcionário que pensa em suicidar-se; o indivíduo que se mata por vergonha diante da falência; o soldado que se sacrifica pelos demais; o samurai que se mata em nome da honra; a renúncia desesperada à vida, etc. São inúmeras as situações em que comumente se adota a designação de suicídio. Portanto, é preciso caracterizá-lo. Adotemos a definição de Durkheim:

“Chama-se suicídio todo caso de morte que resulta direta ou indiretamente de um ato positivo ou negativo praticado pela própria vítima, ato que a vítima sabia produzir este resultado. A tentativa de suicídio é o ato assim definido, mas interrompido antes que a morte daí tenha resultado”.

Na literatura predomina o viés individual e psicologizante do suicídio; na vida real, também. É sandice negar os fatores individuais e psicológicos. Não obstante, não é sensato restringir-se ao indivíduo e ao psiquismo. Como observa Durkheim:

“Visto que o suicídio é um ato do indivíduo que apenas afeta o indivíduo, dir-se-ia que depende exclusivamente de fatores pessoais e que o estudo de tal fenômeno se situa no campo da psicologia. E, aliás, não é pelo temperamento do suicida, pelo seu caráter, pelos seus antecedentes, pelos acontecimentos da sua vida privada que normalmente este ato se explica?

Se os suicídios podem ser explicados apenas pelos fatores psicológicos, então, desresponsabilizamos a sociedade. No entanto, nem todos os que sofrem por amor, ou outro motivo qualquer, se matam. Por que outros resistem e não sucumbem ao ato suicida? A resposta está na própria sociedade. É isto que Durkheim demonstra em seu clássico estudo sobre o suicídio enquanto um fenômeno eminentemente social. Não que ele desconsidere a psicologia; ele apenas enfatiza os fatores sociais.

As causas do suicídio não estão, portanto, nos indivíduos – e naquilo que eles declaram no momento desesperado em que abraçam a morte. Os indivíduos apenas sucumbem à tendência suicidogênea disseminada na sociedade enquanto um estado geral, isto é, como um fator exterior aos indivíduos e independentes deles.

Em cada sociedade há uma tendência coletiva para o suicídio, uma força exterior aos indivíduos, mas que se manifesta através destes. Esta tendência é especifica a cada sociedade e está vinculada aos diferentes hábitos, costumes, idéias, etc. Sua intensidade é também determinada socialmente, isto é, a partir do contexto de cada sociedade específica. Observe-se que as sociedades não são compostas apenas por indivíduos, mas também por fatores físicos materiais independentes destes e que também influenciam a vida social. A intensidade com que se manifesta a tendência suicidogênea depende dos seguintes fatores:

“...primeiro, a natureza dos indivíduos que compõem a sociedade; segundo, a maneira como estão associados, ou seja, a natureza da organização social; terceiro, os acontecimentos passageiros que perturbam o funcionamento da vida coletiva, sem alterar no entanto a constituição anatômica desta, tais como as crises nacionais, econômicas etc.”

"Quanto mais se enfraqueçam os grupos sociais a que ele (indivíduo) pertence, menos ele dependerá deles, e cada vez mais, por conseguinte, dependerá apenas de si mesmo para reconhecer como regras de conduta tão-somente as que se calquem nos seus interesses particulares. Se, pois, concordarmos em chamar de egoísmo essa situação em que o eu individual se afirma com excesso diante do eu social e em detrimento deste último, podemos designar de egoísta o tipo particular de suicídio que resulta de uma individuação descomedida”

Por outro lado, quanto maior a integração do indivíduo à sociedade, maior a manifestação de outro tipo de suicídio: o altruísta. Se o individualismo excessivo pode induzir ao suicídio, a absorção do indivíduo pela coletividade pode ter o mesmo efeito. “Quando desligado da sociedade, o homem se mata facilmente, e se mata também quando está por demais integrado nela”, afirma Durkheim.

Há outro tipo de suicídio analisado por Durkheim: o anômico. Este resulta de desequilíbrios sociais ocasionados por crises econômicas e políticas que modificam as condições sociais sob as quais se sustentavam os indivíduos. Nestas circunstâncias, rompe-se a autoridade sustentada nas normas tradicionais e os indivíduos ficam sem referências. A crise produz deslocamentos financeiros, gera falências e processos de enriquecimento que fazem surgir os novos ricos. De um lado, a dificuldade em aceitar a situação material inferior; de outro, a cobiça diante da nova riqueza. E, em meio à crise, a moral não mais se sustenta e os indivíduos são obrigados a se educarem numa nova moral adaptada à nova situação. Este processo é doloroso e coloca em movimento a tendência suicidogênea anômica.

O suicídio é um ato racional e humano. Suas motivações se manifestam individualmente – seja pelas declarações dos indivíduos suicidas, seja pelas interpretações que surgem em cada caso específico. Um certo psicologismo tende a desconsiderar que o indivíduo vive em sociedade e que, portanto, suas atitudes não estão desvinculadas do meio em que vivem. Um certo sociologismo tende a desprezar os fatores psíquicos e individuais, como se fosse possível encarar a dor e o sofrimento dos que abraçam a morte voluntária e dos seus próximos apenas se reportando aos fatores sociais.

É preciso compreender o sofrimento alheio e dar-lhe solidariedade.